Crítica sobre o filme "Rastros de Justiça":

Wally Soares
Rastros de Justiça Por Wally Soares
| Data: 18/02/2010
Após retratar os últimos polêmicos momentos de Adolf Hitler no excepcional A Queda!: As Últimas Horas de Hitler, o cineasta alemão Oliver Hirschbiegel se recuperou da bagunça que foi a produção de Invasores para cutucar uma ferida humana (e política) neste ambicioso e interessante Rastros da Justiça. Escrito com grande veia teatral por Guy Hibbert, a obra em si é recheada de implicações morais instigantes, partindo de enredo original que pretende confrontar o passado e analisar o que está reservado para o futuro da humanidade. Então, com um dos confrontos mais violentos da história como pano de fundo, insere dois ácidos personagens em um turbilhão de angústia, remorso e culpa. Inicia-se, com isso, um bravo e intrincado estudo sobre a violência. É uma pena, portanto, que a visceralidade do discurso seja condensada por um roteiro que carece de melhor estruturação. Ainda que rodeado de elementos virtuosos, a força de Rastros de Justiça se perde em algum momento de sua um tanto curta duração - que por si só inibe a discussão (e os personagens).

O longa-metragem tem início em algum ponto dos anos 70, momento decisivo do conflito étnico-policial que se apoderou da Irlanda do Norte. Surge em cena o jovem Alistair Little (Mark David), líder de uma pequena gangue de adolescentes que trabalham para o grupo paramilitar UVF (que na época mantinha os católicos no alvo). Decidindo se comprometer à luta armada, Alistair resolve matar uma figura do lado inimigo. Mas, o que teria sido apenas um assassinato o assombrará pelo resto de sua vida. No momento da tragédia, o irmão do alvo não só presencia mas, mais adiante, é culpado pela mãe por não ter reagido. Fatos que são revividos na mente dos personagens já adultos, sendo levados por dois carros distintos para um mesmo local - Alistair (Liam Neeson) concordou em reencontrar com Joe (James Nesbitt), o irmão que presenciou o crime, para que ambos possam seguir em frente com o pouco de vida que lhes restam. Mas, atormentado pelo passado e pelo fardo que segurou, Joe tem em mentes outros planos para seu reencontro com Alistair - que por sua vez será o foco de um programa televisivo sobre pessoas vitimadas.

A película é, de certa forma, uma resposta a Domingo Sangrento, o retrato desconcertante de Paul Greengrass sobre os conflitos violentos que servem de palco para a juventude dos personagens aqui revelados. É curioso, alias, que aquele filme também tenha o ator James Nesbitt como protagonista. O roteiro de Hibbert de inicio parece querer apenas construir uma tensão psicológica entre o confronto dos dois personagens mas, a certo ponto, vê-se que suas intenções vão muito além. Hibbert não só almeja retratar as angústias cortantes - e particulares - destes homens tão distintos, mas decide edificar um paralelo poderoso com os eventos que os puserem ali. O que se transforma em uma verdade provocação dos males que ainda residem graças àquele momento histórico que tanto estigmatizou. Assim, o filme se torna uma discussão sobre a violência, ao passo que o personagem de Joe pensa seriamente em buscar vingança - ou, como o título original já sutilmente emprega, buscar seus “cinco minutos de paraísoâ€.

Em algum lugar dos oitenta e pouco minutos de duração, porém, a força do filme dilui-se a ponto de fragilizar toda a discussão potencializada. Toda a carga provocada pelo enredo é descarrilada quando Hibbert falha na estruturação narrativa da película. O longa-metragem não só se torna frio e sem fluidez, mas realmente apático diante de insinuações que tinham como objetivo estremecer as bases da audiência. Isso, porém, nunca corre. Ainda que seja uma obra continuamente interessante, a assistimos de forma impassível, sem que aquelas emoções ganhassem uma dimensão mais ressoante. Mas, apesar desta decepção do script, os personagens nunca perdem o brilho e a discussão sobre a violência mantém-se especial apesar dos devaneios corriqueiros da trama.

Parte do mérito do filme deve-se a direção curiosa de Hirschbiegel. Realizando um número bem grande de planos longos, o diretor nos insere naquele meio de forma íntima e, logo na primeira metade, é impossível não sentir-se tenso diante do que está para ocorrer. É válido notar um plano-sequência em especial de quase cinco minutos cujo destaque é a atuação consistente de Liam Neeson, que evita cair em exageros típicos e tomar rumos fáceis. Ele conduz seu personagem com o senso melancólico apropriado, transformando-o em - como uma personagem diz - “um homem quebradoâ€. O espetáculo performático, porém, fica por conta de James Nesbitt - um arraso. De início soando um pouco exagerado, aos poucos ele começa a entrar na sua pele e provocar emoções realmente genuínas. A certo ponto, está tão dedicado no papel que é inevitável sentir-se completamente absorvido por sua energia crua e poderosa. Em muitos sentidos, Neeson e Nesbitt elevam Rastros da Justiça.

No plano geral, Rastros da Justiça não atingiu todas as notas que poderia e, no arranjo, se denota realmente perdido. Mas é impossível repreender suas virtudes incontestáveis. Seja o elenco soberbo, a direção de ótimos momentos ou o poder irrefutável de um sólido argumento na forma como mira para balançar estruturas. Provavelmente não conseguirá enviar sua mensagem muito longe, mas para quem tiver a sorte de ser envolvido pelo belo número de valores aqui encontrados, certamente encontrará na película uma sessão cheia de fortes reflexões acerca do mundo em que vivemos - e a violência que sancionamos nele. (Wally Soares)