Crítica sobre o filme "Espírito da Colmeia, O":

Eron Duarte Fagundes
Espírito da Colmeia, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 09/04/2010
O espírito da colmeia (El espiritu de la colmena; 1973) dirigido pelo espanhol Victor Erice, é um daqueles filmes lentos e herméticos que, para desespero de meu amigo Renato Pedroso Júnior, eu contrapunha como forma superior de cinema a realizações mais acessíveis ao público tais Dublê de corpo (1984), do norte-americano Brian De Palma, e Os caçadores da arca perdida (1981), do norte-americano Steven Spielberg. Embora um impactante filme atual como O labirinto do fauno (2006), do mexicano Guillermo Del Toro, (curiosamente também tratando duma visão infantil, também ambientado no franquismo espanhol, também buscando uma leitura subliminar de metáfora política), possa dar a impressão de misturar água com vinho, a revisão de O espírito da colmeia reacende em todo o seu esplendor a discussão da dicotomia cinematográfica entre arte e indústria, graças ao genial rigor com que Erice edificou um ritmo cinematográfico único na história.

Erice nasceu em 1940 e é um cineasta de poucos filmes; O espírito da colmeia é o único que teve lançamento comercial no Brasil, e mesmo assim este pretendido lançamento comercial teve exibições um tanto quanto secretas em salas de arte e ensaio do circuito, como, entre nós, o extinto cinema Bristol coordenado pelo falecido programador Romeu Grimaldi. Nada que não se esperasse: a hipnose cinematográfica construída por Erice não é mesmo de digestão fácil; não acontece nada em cena, mas ao mesmo tempo acontece o máximo de cinema; a hora e meia de filme tem uma duração mental muitas vezes maior (três horas, talvez?) porque Erice se debruça sobre cada locação natural e cada gesto de suas personagens com um vagar soberbo.

Na época houve quem comparasse a realização de Erice com os filmes de outro espanhol, Carlos Saura, especialmente Cria cuervos (1976). Na verdade, o ritmo narrativo de Erice diverge bastante do de Saura, sem dizer-se que o cerebralismo de Erice impõe outras imagens que aquelas permitidas pela emoção de Saura. É bem verdade que o pico do cinema de Saura (Cria cuervos e Elisa, vida minha, 1977) nasceu a partir do momento em que Saura viu na Espanha a impressionante figura cinematográfica infantil de Ana Torrent no filme de Erice; mas Saura e Erice são como irmãos gêmeos que não vieram do mesmo óvulo, e isto acaba alterando sua essência, uma essência que não se pode detectar matematicamente mas que é percebida pelo senso do espectador.

Um dos trunfos centrais de O espírito da colmeia é a fotografia ocre de Luis Cuadrado, fotógrafo também de Saura na época e que pouco depois ficou cego, sendo substituído nos filmes de Saura por Teodoro Escamilla, um nome que aparece nos crétidos do trabalho de Erice. Misturando as sensações das garotinhas impressionadas com as visões do monstro Frankenstein criado no filme de James Whale visto num cinema interiorano itinerante, as fantasias da mãe delas que escreve cartas a um amante imaginário (um soldado da Cruz Vermelha Internacional) e as anotações igualmente fantásticas do pai sobre apicultura, Erice tece em O espírito da colméia uma teia de imaginação das personagens que ele trata com absoluto rigor intelectual. Mas este rigor do cérebro nunca é mofado ou estéril: é uma abertura para a grandeza plástica do filme. (Eron Fagundes)