Crítica sobre o filme "Corações Loucos":

Eron Duarte Fagundes
Corações Loucos Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 09/04/2010
De uma certa maneira, Corações loucos (Les valseuses; 1973), o filme que tornou Bertrand Blier um autor a considerar e começou a traçar uma constelação em torno de nomes como Miou-Miou, Gérard Depardieu, Patrick Dewaere ou mesmo Isabelle Huppert (que aparece num pequeno papel duma adolescente pequeno-burguesa que se rebela contra seus pais e se engaja na caravana dos vagabundos que roubam sua família), se assemelha em estrutura e intenções a Louca paixão (1972), o filme holandês que tornou o diretor Paul Verhoeven e sua estrela Rutger Hauer conhecidos entre nós: uma constante provocação às regras (especialmente a sexuais) de convivência burguesa, uma narrativa desabusada e solta como quem vai empilhando episódios para ver no que vai dar, uma atmosfera formal e temática (em ambos os filmes) que identifica claramente uma época (social e cinematográfica). O que falta talvez a Blier é a força escatológica de Verhoeven, ou talvez não seja o caso de falta mas de percepção ou orientação de mundo; o resultado é que as características francesas de Corações loucos transformam as irreverências eróticas de Blier em algo mais suavemente poético, coisa que o filme de Verhoeven despreza.

É curioso pensar em Corações loucos dentro de seu tempo cinematográfico, a década de 70 do século XX. Foi uma época em que a pornografia explícita explodiu nas telas dos cinemas. Filmar as sacanagens de cama entre as pessoas dava dinheiro, o lucro era ainda maior porque estes filmes usavam de um sistema de produção rasteiro e barato. Que influências ou ligações com este subcinema poderia ter um filme como o de Blier? Seus dois protagonistas são criaturas sacanas, escrotos mesmo: dois jovens vagabundos que vivem de roubar (na verdade, pequenos golpes contra pessoas) e expor mulheres a humilhações sexuais, como aquela senhora que amamenta um filho no trem e depois é obrigado a “amamentar†um dos marmanjos, caindo na gandaia com eles. O triângulo amoroso de Miou-Miou, Depardieu e Dewaere e depois Jeanne Moreau-Depardieu-Dewaere era um recurso habitual dos filmes pornográficos de então. Porém, o senso crítico e cinematográfico do cineasta francês é aguçado e tem um sentido de profundidade fílmica que o afasta dos vazios de imagens de seu patrício Just Jaekin, um dos pornógrafos ilustres daqueles anos. O conflito humano de Corações loucos é a diferença por trás das aparências.

É claro que Depardieu e Dewaere dominam o filme com vigor, tão másculo quanto homoerótico na ambiguidade de sua amizade. Mas não se pode deixar de atentar para as ironias físicas de Miou-Miou. E deve-se exaltar as breves mas extraordinárias aparições de Jeanne Moreau. E sublinhe-se a aparição, em camada secundária, duma muito nova Isabelle Huppert, alguns anos antes de ser alçada à condição de estrela a partir de seu notável desempenho em Um amor tão frágil (1976), do suíço Claude Goretta.

De uma certa maneira, Corações loucos pode repor na ordem do dia a importância daqueles anos loucos. A loucura pela loucura. O que de novo o aproxima a seu irmão mais cruel, Louca paixão, de Verhoeven. (Eron Fagundes)