Crtica sobre o filme "Vício Frenético":

Wally Soares
Vício Frenético Por Wally Soares
| Data: 29/04/2010
Ainda que Wener Herzog seja o que gosto de denominar como “cineasta da natureza selvagem”, possuindo no currículo excelentes filmes que vão desde O Enigma de Kaspar Hauser ao recente O Sobrevivente, nunca é bom limitar-se apenas à um gênero e estilo. Cineastas são melhores quando diversificam suas linguagens. E, apesar de realizar tanto filmes de ficção quanto documentários, os temas recorrentes de Herzog giram em torno do fascínio do homem em meio a natureza (e o efeito extraordinário desta sobre o mesmo). O ápice do cineasta, alias, foi no documentário O Homem Urso. Em Vício Frenético, ele pode abrir e finalizar a metragem com imagens de um animal nadando, mas é o mais próximo que ele chega em contato com a natureza. O foco do filme é, na verdade, de outra natureza: a humana.

Existe certa polêmica em torno da origem do filme. Apesar de ter sido rotulado pela mídia como refilmagem de um filme homônimo de 1992 dirigido por Abel Ferrara com Harvey Keitel no papel principal, Herzog declarou publicamente que não trata-se de um remake – apesar das óbvias semelhanças de trama e personagem. O diretor do original, Ferrara, chegou a insultar Herzog dizendo que ele “deveria morrer no inferno” por estar realizando o projeto. Herzog, por sua vez, retrucou dizendo que nunca viu o filme de 1992. Complicações a parte, ambos filmes giram em torno de um detetive corrupto viciado em drogas que se mete em confusões no submundo do crime. No filme de Herzog, o detetive chama-se Terence McDonagh (Nicolas Cage), e o roteiro segue sua rotina enquanto investiga um assassinato em meio a uma Nova Orleans pós-devastação do furacão de Katrina. Vício Frenético possui um formato bastante convencional, mas representa Cinema no seu estado mais atípico. Explico: Herzog não ousa na sua condução, realizando planos abertos vez ou outra e alguns enquadramentos interessantes, mas nada demais. O que transforma a película em um exercício original é sua subversão, empregada por um roteiro que registra a jornada do personagem de Terence de forma totalmente dinâmica. Nunca se sabe exatamente o que vai acontecer em Vício Frenético, e as surpresas são sempre satisfatórios. Apesar de possuir momentos bastante densos e dramáticos, a força do filme provém da forma distorcida com a qual retrata tanto a trama quanto os personagens. O humor é característica comum na metragem de início ao fim. Em vezes surge explícito, nos momentos em que testemunhamos o quão macabra a mente de Terence consegue ser, em outros implícito – o acidente na sequência inicial (que inclusive serve de causa para o estado mental do personagem) precisa ser uma piada, caso contrário é patético.

Apesar de abraçar o tom mais cômico, Herzog não deixa de registrar – ao lado roteirista estreante William H. Finkelstein – uma bela análise psicológica do personagem instável de Terence. Quando o filme inicia-se, Terence e seu parceiro – também um tanto distorcido – debatem se devem ou não salvar um presidiário preso em sua cela após a inundação da prisão (provavelmente decorrente do furacão). Após especulação, Terence opta por salvá-lo. Essa escolha moral, porém, lhe deixa marcado – literalmente. Sofrendo um acidente (bastante absurdo, vale dizer), Terence ganha um problema nas costas irreversível. Para amenizar a dor, é receitado remédio – do qual logo se torna dependente. Do remédio, ele logo transita para as drogas. Cocaína, maconha, enfim. A vida de Terence é, em termos, corrompida por um ato de bondade. Ao menos este é o discurso que o roteiro parece querer afirmar. Terence se afunda no submundo de Nova Orleans, à procura de drogas, sexo e dinheiro (é particularmente viciado em apostas). Ainda que não exista sequências de ação ou de suspense, o longa-metragem entretém de forma eficaz, por meio de um personagem interessante e uma narrativa que parece dar gargalhadas frente ao perigo – como o próprio Terence.

A força motriz do filme – e o que o eleva a outro patamar – é a atuação singular de Nicolas Cage. Após uma onda de filmes horríveis quebrada por Presságio, Cage ainda ficou nos devendo uma atuação decente. E na sua personificação de Terence ele nos lembra como já foi um ator tão intenso e verossímil. Seu retrato é tão minucioso quanto é atormentado. Cage realmente some no personagem, trazendo a tona tiques e expressões completamente genuínas. O desempenho do sujeito vai do assustador para o engraçado em questões de segundos. O que é, alias, a síntese do filme – um drama policial sério disfarçado de comédia noir (inundada em humor negro).

Especialmente recomendável para quem não se prende a rótulos e gêneros específicos, o filme vai espantar aqueles que primam pelo politicamente correto ou para quem espera por um filme de ação. A película não poderia ser mais politicamente incorreta e não dá a mínima para satisfação burocrática. É simplesmente um retrato da loucura e do delírio, por sua vez personificados por um homem totalmente perdido em uma cidade caindo aos pedaços. Herzog realiza um trabalho inspirado, que acerta na composição mais distorcida e na liberdade que entrega a Nicolas Cage – a principal atração. (Wally Soares)

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Talvez o alemão Werner Herzog não tenha hoje o prestígio de que desfrutou nos anos 70, quando obras-primas como Fata Morgana (1970) e Aguirre, a cólera dos deuses (1972) seduziram os cinemaníacos de então, embora ele ainda rode filmes fortes como O homem urso (2005) e O sobrevivente (2006). Mas certamente uma realização como Vício frenético (Bad Lieutenant porto of call New Orleans; 2009) desmancha integralmente as energias cinematográficas próprias do cinema de Herzog.

Não se pode negar que certas demências próprias das criações visuais de Herzog ainda se encontram ao longo do novo filme do cineasta. Certos delírios do protagonista, um policial que se torna um viciado depois dum acidente de salvamento em que sua coluna é lesada numa água fria e paradoxalmente persegue marginais tão viciados e psicologicamente esquisitos quanto ele, são recriados com o absurdo característico da encenação de Herzog, que, filmando na América (lembram que Stroszek, 1977, teve sua segunda parte ambientada nos Estados Unidos e a visão terrível que Herzog apresentava daquela sociedade no coração da década de 70?), permanece muito fiel a si mesmo. É bem verdade que Herzog tem o dom de criar uma tensa atmosfera cinematográfica, como nos melhores policiais do cinema americano, nos quais Herzog se inspira sem perder propriamente sua personalidade germânica, como não se pode nunca deixar de reiterar. Ao misturar uma visão própria de elementos da sociedade americana (revendo um antigo filme de Abel Ferrara) com suas tensões europeias decadentes, Herzog faz de Vício frenético um produto estranho mas que se desregula a cada curva da narrativa.

Impressionante diretor de atores (basta aludir ao que ele fez com o falecido Klaus Kinski no clássico Aguirre), Herzog opera uma transformação radical naquilo que é o habitual aborrecido e molenga em Nicolas Cage, que utiliza seus artifícios de astro hollywoodiano para recriar com complexidades inusitadas o policial à beira do marginalismo. Eva Mendes, uma espécie de chamarisco erótico depois das cenas quentes com Joaquin Phoenix em Os donos da noite (2007), de James Gray, aparece pouco e trivialmente em cena. Enfim, como ocorreu com Ervas daninhas (2009), do francês Alain Resnais, o novo Herzog é mais uma pretensiosa mas frustrada sequência de carreira de um dos mais importantes cineastas vivos, mas que tem lá seus passos em falso. (Eron Fagundes)