Por Wally Soares
| Data: 17/06/2010
Volta e meia surge um filme como Preciosa: Uma História de Esperança, um drama nada sutil que se compromete a narrar uma história cujos âmbitos são bem mais realistas do que nós mesmos gostarÃamos de imaginar. O que o difere das convencionais abordagens do tema é a intensa visceralidade com a qual ele é construÃdo. Ou, mais especialmente, o equilÃbrio de um roteiro que proporciona uma visão pessoal e ingênua sobre eventos que cortam afundo - trazendo a tona o verdadeiro horror humano refletido pela sociedade estigmatizada. São os anos 80 que servem de palco para a história, mas, em pleno século XXI, sua significância arde tão forte quanto na década conflituosa (e supostamente glamorosa) dos anos 80. O mundo da personagem principal - inundado em preconceito, discriminação, amargura e um senso irremediável de desgosto - comove porque surge verdadeiro e sem resquÃcios tolos de melodrama e maniqueÃsmo. Se Preciosa: Uma História de Esperança almejar construir um abismo embaixo dos pés do espectador, os méritos são inteiramente de sua total imersão em uma realidade desprovida de retoques ou amenizações.
O longa-metragem se passa em 1987, no infame bairro de Harlem em Nova York, narrando à história de Claireece Precious Jones (Gabourey Sidibe), uma jovem obesa e analfabeta de 16 anos. Subjugada a ser tratada como lixo na escola e nas ruas - seja por seu tamanho, sua cor ou sua simples condição social - ainda se vê encurralada em sua própria casa. Grávida à custa de seu pai - pela segunda vez - Precious precisa lidar com sua degradação emocional ao mesmo tempo em que come o pão que sua mãe, Mary (Mo’Nique), amassou. Tratando a filha como vagabunda, Mary vê em Precious apenas um pretexto para sobreviver em cima do dinheiro pago pelo governo para a primeira gravidez. O destino de Claireece, portanto, parece ter sido delineado, mas, devido a uma série de eventos extraordinários, encontra esperança graças ao acolhimento de completos estranhos.
Baseado em romance de Sapphire, o roteiro escrito por Geoffrey Fletcher é inconsistente e desfragmentado na hora de compor uma estrutura narrativa inteiramente coerente. Ainda assim, se apóia na história poderosa e extrai dela o maior número de elementos fortes para moldar um drama impressionante. E, por fugir do melodrama e de habituais clichês, se sai relativamente bem. A grande sacada da história é acompanhar toda a situação pelo olhar de Precious. Desiludida, mas ingênua, nervosa, mas doce, a personagem é construÃda com um olhar seguro e especial. Sua fuga do mundo real, por meio de visões repletas de glamour de uma vida de celebridade e holofotes, é bem pontuada, ainda que administrada por meio de excessos. Vem em mente a sequência um tanto forçada que a coloca cantando em coral de igreja. Mas nem sempre o roteiro realiza escolhas corriqueiras, sabiamente apostando com segurança nos diálogos fortes e abrindo caminho para o elenco arrebatar.
E os atores são, sem sombra de dúvida, o grande motriz da obra. Não se vê Preciosa: Uma História de Esperança e pensa em outras pessoas para viver tais personagens. Essas atrizes se fundem de forma tão magnÃfica nestas emoções que a explosão fervorosa de comoção e raiva é inevitável. Gabourey Sibide surgiu do nada e, abordando sua personagem com total naturalidade, impõe um poderoso nó na garganta do espectador. Apaixonamo-nos pelo o que ela representa, acima de tudo (e uma cena em especial é o suficiente para pregá-la em sua memória). O que dizer então de Mo’Nique, outrora tão trash, vibrando talento e furor a ponto de culminar em um monólogo de força inimaginável. Ela coloca a audiência toda aos seus pés. Em menor grau, admiração vai para a consistência de Mariah Carey. Mas é Paula Patton quem surge esplêndida em forma de coadjuvante. Representa, possivelmente, uma aura decididamente mais emocional e afetiva do longa-metragem.
O diretor, Lee Daniels, chega ao seu segundo filme após o horrÃvel Matadores de Aluguel, se reerguendo admiravelmente. Se em seu filme de estreia Daniels surgiu muito pretensioso, aqui ele está mais seguro e firme no que almeja extrair. Como o roteiro, possui a parcela de excessos e tiques incômodos (como a luz exagerada que inseriu na porta da sala de aula de Preciosa, a fim de atribuir ao ambiente uma porta para a esperança). Ainda neste conceito, porém, acerta ao lado da fotografia na hora de compor a sala de aula com um ambiente de forte otimismo, em contraponto à casa de Preciosa - conturbada e sombria. Emprega ainda alguns interessantes movimentos de câmera e, com a ajuda da curiosa montagem, explora o seu visual de forma impactante. A atmosfera de Preciosa: Uma História de Esperança traz consigo grande relevância na composição final. E os elementos surgem no lugar certo, com raras ressalvas e irritações. É um belo drama, no final das contas.
Muitas reclamações tem surgido alegando que a obra ameniza a dor da realidade ao trazer consigo uma aura especial de esperança e otimismo. Não é uma constatação verossÃmil. As intenções do filme, como seu tÃtulo nacional já entrega, é a de narrar um conto que carrega consigo um grau de otimismo assumido, ainda que a amargura esteja presente por grande parte da pelÃcula. O forte do roteiro é justamente realizar um paralelo entre a mãe e filha, e os caminhos que cada uma escolheu para si. O monólogo da personagem de Mary, ao final, entorpece. E a escolha de Preciosa, por sua vez, deixa uma pitada de otimismo na própria audiência, que absorve o espÃrito inabalável desta mulher que decide encarar os demônios de sua vida para encontrar valor nas coisas preciosas que a vida tem a oferecer. Piegas ou não, o fato é que Preciosa: Uma História de Esperança comove e abala - sem que tenha que sacrificar integridade cinematográfica para almejar tais feitos. (Wally Soares)
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É do lodo humano que é feita a matéria temática de Preciosa (Precious; 2009), um filme rodado com nervos formais por Lee Daniels, nervos formais (câmara e montagem inconstantes, intérpretes e cenários desglamurizados) que reforçam a instabilidade e a sujeira (fÃsica e moral) das personagens e do meio onde se passa a história. Uma história tortuosa: Preciosa é uma jovem negra, gorda e analfabeta, isto é, detém em si vários elementos que convidam ao preconceito e à rejeição da sociedade, incluindo-se aà o espectador que possa dispor-se a ver o filme; e, penetrando ainda mais na tortuosidade deste universo, o que se vê é que Preciosa é estuprada desde bebê pelo pai, com a conivência da mãe, e destes estupros lhe vêm dois filhos, um com sÃndrome de Down.
As ligações do estilo de filmar de Daniels com o realismo cinematográfico italiano (adaptado à s intenções desta primeira década do terceiro milênio, com seus recursos artificiais de encenação) se evidencia com a cena em que Daniels cita Duas mulheres (1960), de Vittorio de Sica, chegando a fantasiar o contracenar de Preciosa com a “estrela†Sophia Loren. Entre o real e o fantasioso, misturando distanciamento crÃtico com melodrama, Preciosa chega facilmente ao coração do espectador, mesmo que certas asperezas se esforcem pelo afastamento. Destaques especiais para os desempenhos de Gabourney Sibide (como Preciosa) e Mo’Nique (como sua mãe), esta responsável por uma deslumbrante cena final de mãe e filha diante da assistente social. (Eron Fagundes)