A sensação que temos, ao fim de Invictus, é a de que estamos diante de uma realização não só profundamente significativa em seu retrato histórico, mas totalmente contundente na forma com que aborda um tema já banalizado no Cinema. A força da história da película, e a conexão maravilhosa que é construída entre os personagens e audiência - moldam com bastante sensibilidade e percepção uma análise sócio-política (e humana) das mais bonitas e recompensadoras. Assim, ao longo da metragem aprendemos à entreolhar as falhas bem visíveis de um roteiro pedestre e os equívocos ocasionais de uma direção exagerada na sua abordagem de tom e escala. Torna-se, logo, impossível resistir à força humana do projeto, que transcende de uma forma maravilhosa e atinge o pulsante em seu clímax. Então, ainda que seja um longa-metragem problemático, surge também formidável no efeito sob quem o assiste - provocando sensações das mais diversas.
Escrito por Anthony Peckham em cima do livro de John Carlin, o roteiro inicia-se logo após a eleição que alçou Nelson Mandela (Morgan Freeman) à presidência da África do Sul em 1994. Apenas quatro anos após a saída dele da prisão - por onde ficou por longos 28 anos - Mandela assume tal cargo em uma época pós-apartheid, com o fim da segregação racial. Ainda assim, o país não deixa de transparecer as cicatrizes - enquanto de um lado os negros encontram-se com grande rancor e ressentimento, do outro os brancos vêem dificuldade na aceitação desta população como parte de sua terra. De ideais fortes, Mandela enxerga no jogo de rúgbi um divisor de águas que, se convertido, poderá unir os dois lados em prol de um mesmo proposto. Decide, então, abordar o capitão de time do país, Francois Pienaar (Matt Damon), e inspirá-lo a vencer a Copa do Mundo de 1995. A primeira tomada de Invictus é de uma virtuosidade extraordinária. Em uma simples e bela tomada, Eastwood sintetiza o drama de seu filme. A câmera que sobrevoa a passagem de Mandela de carro por estrada que separa jogadores de rúgbi pobres e negros de um lado e jogadores profissionais brancos de outro é feita de forma simples e simbólica. Uma beleza estética e cinematográfica que infelizmente não permeia pelas duas horas seguintes. Uma pena, já que Eastwood é diretor sóbrio que poderia ter transformado a narrativa de Invictus em uma estrutura menos convencional e mais ambiciosa. Mas ele se restringe, deixando o trabalho mais importante para o roteiro. Neste aspecto, é mais que válido dizer que somos instigados pelo drama colocado em pauta, os personagens bem construídos e a história um tanto interessante. Mas falta à Peckham maior desenvoltura e diversamente ele surge com uma mão excessivamente pesada. Seja nos diálogos forçados ou em cenas desnecessárias, é um roteiro que precisava de um polimento. Só funciona mesmo porque traz consigo uma história tão forte em suas implicações que praticamente enterra qualquer estagnação.
É fácil se decepcionar por Invictus. Além do formato convencional e do roteiro falho, deixa de lado muitos aspectos do próprio Mandela. Não só isso, mas o próprio Eastwood comete alguns erros incômodos - como no posicionamento de canções erradas nos piores lugares. A força da película, porém, é outra. Como dito, é algo que simplesmente transcende e que se torna estranhamente palpável. É um filme que se sente. Entretém e fascina, intriga com introspecção humana e constrói uma imagem maravilhosa de Nelson Mandela - ainda que não seja a figura histórica completa. É um filme, portanto, acessível e intimidante. Lhe traz um conto moral sem ser maniqueísta e evoca beleza na sua visão de um mundo que possui a força de transformar intolerância em esperança. Você sai da sessão impressionado pelo o que Mandela representa, mas - mais importante ainda - com seu coração na mão. O clímax do longa-metragem é arrasador de uma forma estranhamente curiosa. A sensação ao fim é de puro contentamento e inspiração. De uma forma ou de outra, o filme meche com você.
A união entre política e esporte também é fruto de um dos melhores aspectos do filme. Ver como se desenrolou essa conexão na mente de Mandela é incrível e observar os aspectos sociais desta união nutre à película uma força ainda mais abrangente. Então, quando a obra se torna um filme de esporte, as cenas de rúgbi não se resumem apenas à jogos banais, já que é inserida uma importância majestosa ao jogo em si. Portanto, é fácil se ver vibrando e automaticamente envolvido pela ação na tela - os minutos finais são a prova disso. Alias, o grande Eastwood realiza uma escolha especialmente ousada no clímax. Bem no momento de maior suspense e drama da obra, ele utiliza de uma câmera lenta contínua e longa, que não se abstém à apenas uma ação em cena - como se todo a nação estivesse se movendo a milissegundos. Uma escolha arriscada que poderia ter dado terrivelmente errado. Provável que teria mesmo - mas Eastwood transforma este artifício outrora tão maniqueísta em um forte atributo. Você reage de forma esplêndida. Isso não evita, porém, que uma cena em si surja totalmente deslocada (e patética), em momento entre dois policiais e um garoto negro, de especial fragilidade dramática. O longa-metragem teria sido mais forte sem ela.
Talvez a principal virtude do filme esteja na atuação magnífica de Morgan Freeman. Em um tributo digno ao homem por trás do símbolo, Freeman se torna Mandela de corpo e alma. É uma transformação de voz, tom, postura e trejeitos. Mas vai muito além disso. O ator surge tão emblemático e inspirado que parece ter capturado a alma deste homem - foge da mera imitação para se transformar em algo honesto. E o que é melhor que isso? Alias, ainda que Matt Damon possa surgir de início um pouco desconfortável no papel, vai gradualmente se tornando uma forte atuação. Os dois atores fazem de Invictus o cálculo humano necessário em meio à um texto de cálculo político. E, acompanhando, Eastwood insere a garra e bela emoção que poderíamos esperar de seu espírito indomável. Um filme imperfeito e até um pouco incômodo em aspectos - mas forte demais para não agraciar devidamente.