Crtica sobre o filme "Estrada, A":

Wally Soares
Estrada, A Por Wally Soares
| Data: 26/07/2010
A quantidade recente de filmes pós-apocalípticos (ou mesmo apocalípticos) chega a ser cansativa. E, lançado na mesma época aqui no Brasil que o fraco O Livro de Eli, A Estrada foi confundido por muitos como apenas mais um do sub-gênero. Uma pena. Adaptado do romance de Cormac McCarthy (Onde os Fracos Não Têm Vez) vencedor do prêmio Pulitizer, trata-se de um filme dessolador e extremamente inimista sobre a busca de um homem por vestígios de humanidade em um mundo literalmente consumido pela dor. A prosa de McCarthy – dura, realista, forte – é transposta para a tela com um senso de poesia magnífico. Dos instantes iniciais – carregados pelas imagens tenebrosas de um mundo perdido e pela narração trágica do personagem principal – até o clímax profundamente triste, é uma obra poderosa que carrega consigo um grande e inexorável luto por um mundo perigosamente familiar.

No filme, Homem (Viggo Mortensen) e seu filho, Garoto (Kodi Smith-McPhee), percorrem o que restou do planeta à procura de mantimentos que possam assegurar sua sobrevivência. Em cenário vegetativo e social completamente devastado, pai e filho vagam pela imensidão negra da terra tentando manter a sanidade e a compaixão. Em meio à expedição em busca de sustento, ambos precisam se preocupar com os canibais que vagam à procura de carne – qualquer que seja. Em flashbacks, Homem se recorda dos minutos finais de sua civilização – mais especificamente, do destino de sua Mulher (Charlize Theron).

Como deu para perceber, os poucos personagens que povoam esta história não possuem nome. Todos vêm devidamente creditados ao fim da película apenas com denominações simplistas e categóricas. Um conceito, por sinal, abordado recentemente na adaptação Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles. A explicação é óbvia. Em tentativa provocativa de universalizar seus temas e personagens, ambos filmes (e seus respectivos livros) anseiam identificação por parte da audiência. E, da mesma forma que não há cenário definido no filme de Meirelles, também não existe um local definitivo em A Estrada. Buscando mais semelhanças, os filmes retratam uma sociedade em frangalhos após um fênomeno sem explicação. Como a cegueira branca, o apocalismo de A Estrada nunca é explicado. Portanto, o filme assume o papel de alegoria. E o roteirista Joe Penhall (Amor Obsessivo) entende muito bem este conceito, apostando no lirismo da narração e na sutileza ao abordar os intensos sentimentos de seus personagens.

Como Ensaio Sobre a Cegueira, A Estrada pode também ser visto como uma descida ao inferno. Completamente inquietante e atingindo momentos de pura angústia, o filme provoca imensa empatia pelos personagens – consequentemente levando o espectador a mergulhar na realidade de seus medos e conflitos. O mesmo vale para a estética, extremamente hábil ao imprimir uma atmosfera pungente de extrema tristeza. Com poucos minutos de duração, o cineasta John Hillcoat nos fecha completamente da nossa realidade, nos afundando no clima tenebroso e quase sufocante que toma conta do longa-metragem. Tudo especialmente acentuado por uma maravilhosa fotografia e uma trilha sonora sublime nas emoções que evoca. Contando ainda com eficiente direção de arte, o filme merece elogios por deixar os efeitos especiais de lado e não se deixar levar pela necessidade de inserir ação e suspense onde não existe. A Estrada é sobre personagens e o fogo que carregam – ou não – dentro de si mesmos.

Focado quase que inteiramente nos esforços do Homem e sua busca ininterrupta por sobrevivência ao lado do filho, não há como não reconhecer o belíssimo trabalho realizado por Viggo Mortensen na que é a melhor atuação de sua carreira. Muito é dito por Mortensen com meros olhares e expressões de desespero, amor, lamento e nostalgia. O jovem Kodi Smith-McPhee é, por sua vez, uma fantástica revelação, surpreendendo nos limites que vai na composição do personagem. Charlize Theron, em mais um papel difícil, atordoa com sua breve intensidade. Os flashbacks com sua personagem são, alias, fortíssimos e muito bem pontuados – nunca surgindo deslocados ou prejudicando o ritmo da metragem. Há também uma participação incrível de Robert Duvall, quase irreconhecível como um velho sem esperança (seu monólogo é profundamente triste).

Capturando a essência do livro e retratando o âmago de seus personagens com sublime afeição, A Estrada só decepciona em seu ato final, apressando alguns fatos e não deixando a emoção entrar em devida ebulição. Nada, porém, que boas atuações e uma bela trilha não resolvam. É marcado por sequências ora aterrorizantes, ora estarrecedoras, em momentos que nos deixam aflitos e com grandes nós na garganta. Diálogos ricos unem-se então a enquadramentos expressivos para formentar o lirismo poético e lamurioso da obra. Na sua composição do homem à beira da perdição, agarrando-se ao último vestígio de inocência abandonado do planeta, A Estrada é – como a literatura de McCarthy – essencial. (Wally Soares)

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Uma raridade do cinema americano. Rodado por um estrangeiro, o cineasta australiano John Hillcoat. Filmado sem concessões em cenários abarrotados de cacarecos de ruínas, A estrada (The Road; 2009) estabelece uma reflexão, entre o real e o simbólico, sobre os tempos sombrios (para evocar a expressão do título de um livro de Hanna Arendt, pensadora alemã) duma atualidade um tanto futurística; as ambientações desoladas e destruídas visualizadas pela narrativa de Hillcoat tem tanto de realismo quanto de metáfora para um mundo em que, apesar da agitação e do colorido de muitos ambientes, o indivíduo muitas vezes parece ter um interior tão ruinoso quanto aqueles cenários, ásperos, duros, indigestos. Se a aludida Arendt se volta para a humanidade de alguns grandes homens para contrapor antídotos a uma época obscura, o realizador australiano busca no vestígio humano de um pai em sua relação com seu frágil filho aquela oposição e aquela resistência que poderiam vencer o temor da morte e a instalação da barbárie.

Pai e filho vagam sem rumo rumo ao sul e ao litoral pelo deserto “humano” em que se teria tornado o planeta depois da ação da violência dos homens respondida pela violência da natureza; há uma cena de terremoto impressionante e assustadora, mas há também uma cena em que as personagens se banham numa catarata onde o mais impressionantemente belo é a força ou o barulho protetores da água que cai ao solo. A busca da bondade é espinhosa diante da situação vivida, mas esta aparente ingenuidade da proposta de A estrada é trabalhada com dignidade e agudeza por Hillcoat. No fim, após a morte do pai, Hillcoat reconcilia o projeto de reconstrução da personagem do menino pela inserção numa nova família, o que ilumina o lado humanista da narrativa: depois que tudo foi destruído (inclusive a família), é pela retomada da família que a esperança ressurge.

Com interpretações exuberantes de todo o elenco, especialmente a dupla central de Viggo Mortensen e do garoto Kodi-Smit-McPhee, A estrada é visualmente tenebroso, escura, e topa na música de Nick Cave e Warren Ellis uma eficácia cinematográfica altissonante mas precisa em suas marcações rítimicas. Repleto de grande cenas (uma delas, o flash back, recurso recorrente no filme, do parto em que a mulher concebeu um dos protagonistas, o garoto que vai dividir com o pai a cena apocalíptica), A estrada foi extraído da literatura de Corman McCarthy e sua veia literária é usada com sensibilidade ao valer-se do narrador-over que às vezes se parece com as densidades poéticas dos filmes do norte-americano Terrence Malick.

Dotado duma claustrofobia do remoto (temporal ou espacial), A estrada é certamente um dos mais inovadores filmes do ano. (Eron Fagundes)