Crítica sobre o filme "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia":

Eron Duarte Fagundes
Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 09/09/2010
O inaudito clima de violência de Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (Bring me the head of Alfredo Garcia; 1974), um dos filmes básicos do norte-americano Sam Peckinpah, se insere dentro da linguagem cinematográfica para revolucioná-la. A tensão formal que emana de cada imagem criada por Peckinpah é um dado de alucinação estilística que devora o observador; os detalhes de construção dramática são primorosos, desde a pessoal transformação em imagens do roteiro até esta áspera utilização dos cenários (mutantes e inóspitos) para caracterizar as relações entre o ambiente descrito pela câmara, o íntimo das personagens e um andamento narrativo interminavelmente belo. Dizem que as quatro horas inicialmente montadas pelo realizador para Meu ódio será sua herança (1969) não teriam como adquirir vida comercial no cinema americano; pode ser, mas eu poderia ficar por quatro horas ou mais penetrando hipnoticamente no universo de Peckinpah e creio que seria mil vezes mais prazeroso que permanecer por quinze minutos diante daquilo que a maioria dos cineastas de hoje proporciona aos espectadores.

A mestria de Peckinpah vem muitas vezes do contraste das seqüências; o choque da violência é ainda mais forte porque lhe sucede aqui e ali uma calmaria estranha. Os planos iniciais de Alfredo Garcia trazem um conteúdo bucólico. Patos passeiam no lago, uma jovem grávida está à beira d’água acariciando sua barriga. Logo pistoleiros a vem buscar para o interrogatório de seu pai, em que seus braços são quebrados por capangas para que ela revele o nome do pai da criança. A partir daí, com a caçada à cabeça de Alfredo Garcia (pela qual o milionário pai da garota oferece um prêmio polpudo), a coleção de cadáveres sucede-se: e Peckinpah filma com impecável estilo esta acumulação de tiroteios e cadáveres. Descobre-se que Garcia morreu em acidente, mas a obsessiva personagem de Warren Oates, um músico de estrada, que namora uma ex de Alfredo, vai conduzir a cabeça do morto (arrancada de um cemitério) por miseráveis povoados mexicanos, enfrentando inimagináveis disputas a bala, até deparar, numa salão suntuoso, com o homem que encomendou a dita cabeça. No tiroteio final, depois de enraivecido matar o pai da garota que deu à luz o filho de Garcia (na verdade, a cabeça de Garcia está chegando ali na festa de batizado do bebê que tudo motivou), a criatura de Oates é triturado por balas dentro de seu carro, numa explosão de violência tão boa quanto a de Arthur Penn no final de Bonnie e Clyde (1967) e a de Terrence Malick no fechamento de Terra de ninguém (1974). O último lance de Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia é uma sacada notável: o cano da arma aparece em primeiro plano, num fundo escuro, como se estivesse disparando contra o espectador; este artifício narrativo do cinema, que em Peckinpah atinge foros de genialidade, é utilizado mais burocraticamente pelo brasileiro José Padilha no cabo de Tropa de elite (2007), a arma que dispara contra o bandido parece estar também disparando contra a letargia do homem que vê o filme na poltrona de um cinema.

Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia é uma influência constante no cinema. Lembro especialmente um: Loucos do Alabama (1998), dirigido pelo espanhol Antonio Banderas nos Estados Unidos. Como a personagem de Oates no filme de Peckinpah, a criatura de Melanie Griffith no de Banderas está conduzindo em seu carro a cabeça de um morto (Melanie leva a cabeça de seu marido, que ela mesma matou); se a cabeça de Alfredo Garcia atrai para si as moscas em determinado ponto da viagem, a do marido de Melanie desperta o faro de um cão.

Há também em Alfredo Garcia uma auto-referência de Peckinpah. Na seqüência em que dois bandidos de estrada se aproximam de Bennie (Oates) e sua companheira, um deles (vivido por Kris Kristofferson) tentando violentá-la (ela, como boa mulher fácil, ensaia ceder ao criminoso, antes de seu companheiro reagir depondo mais dois cadáveres na trajetória), Peckinpah reeencena certos climas construídos naquele que talvez seu melhor trabalho, Sob o domínio do medo (1971).

Os norte-americanos Quentin Tarantino e Robert Rodriguez são outras cabeças cinematográficas influenciáveis pela valiosa cabeça de Peckinpah. Que me perdoem meus amigos André Kleinert e Davi de Oliveira Pinheiro, mas, diante do perfeito encadeamento estilístico de Peckinpah, não tem para ninguém, nem mesmo para Tarantino, cineasta admirável por vários motivos, mas que não resistiria a uma quebra de braços de Peckinpah. (Eron Fagundes)