Crítica sobre o filme "Tudo o Que o Céu Permite":

Eron Duarte Fagundes
Tudo o Que o Céu Permite Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 04/12/2010
O francês François Truffaut aludiu a Douglas Sirk como “esse dinamarquês nascido com o séculoâ€. Sirk nasceu em 1900 na Alemanha; seus pais eram dinamarqueses; casou-se com uma judia e quando Adolf Hitler apertou a escalada nazista, Sirk teve de fugir e rumou para os Estados Unidos, onde foi o pioneiro do melodrama tal como o conhecemos hoje.

Se o espectador dissecar o esqueleto de uma realização como Tudo o que o céu permite (All that heaven allows; 1955), vai descobrir os elementos em que se estruturam as fotonovelas, as radionovelas e hoje em dia as telenovelas, elementos que no fundo remetem aos velhos folhetins literários do século XIX; ali estão os sentimentos frágeis exacerbados, a pieguice para com os mais fracos, os conflitos de classes simplificados, as paranoias sociais e familiares demasiado esquemáticas. O que impressiona em Tudo o que o céu permite é que de todas estas coisas que nos incomodam nos melodramas espúrios Sirk extrai uma visão devastadora das perturbações humanas na sociedade americana cujo pedantismo social é na verdade uma herança anglo-saxônica; com a mesma ingenuidade do panorama social segundo a ótica de outro europeu na América, o ítalo-americano Frank Capra, Sirk atinge uma densidade dramática mais lacrimosa e que em alguns aspectos o aproximam de alguns momentos de Elia Kazan (mais um americano-europeu).

Sirk tem uma estilização de filmar desconcertante. Utilizando com engenho plástico e ironia estética o colorido da Universal dos anos 50 (algo que inspirou tanto o alemão Rainer Werner Fassbinder quanto as esquisitices do espanhol Pedro Almodóvar), Sirk vale-se de seu aguçado senso dos cenários para retratar o egoísmo e os preconceitos da sociedade americana. No centro da trama, o amor entre uma burguesa viúva com um casal de filhos moços e seu jardineiro (a química interpretativa entre Jane Wyman e Rock Hudson é algo que tanto tempo depois ainda apaixona) provoca as dissociações sociais, o afastamento dos amigos, a revolta dos filhos, o amor num primeiro momento sucumbe mas o trágico retorno assoma numa imagem final dos dois num quadro antológico de neve e um cervo à janela do casal desparelho quanto apaixonado.

É claro que a análise dos embates sociais por Sirk é bastante mais primária que aquela de O criado (1963), rodado na Inglaterra pelo norte-americano Joseph Losey; sem as tensões intelectuais no modelo dos anos 60 de Losey, Sirk é grandiloquente em seu sentimentalismo e mesmo assim adquire uma configuração cinematográfica que permanece viva passado mais de meio século dos tempos que a geraram. Um dos achados sutis de Sirk é revelar, por meios exclusivamente de construção cinematográfica, como os condicionamentos sociais determinam os destinos individuais, abrir o jogo das fofocas de madames, marcar com precisão a maneira como a viúva burguesa acaba inconscientemente invadida por aquilo que aparentemente mais execrava, o primado dos preconceitos sociais sobre os sentimentos pessoais. E todas estas formas de abordagem estão muito mais na direção de Sirk que no roteiro fotonovelesco que se apresenta à aparência de filme.

P.S.: Tudo o que o céu permite traz ainda um registro histórico-documental sobre o nascimento da televisão como divertimento de massas. Dá-se quando os filhos da viúva, ao saírem de casa (ela para casar, ele para estudar fora) dão de presente de consolo à mãe um televisor, para ter o que fazer durante os dias vazios. (Eron Fagundes)