Crítica sobre o filme "Sublime Obsessão":

Eron Duarte Fagundes
Sublime Obsessão Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 04/12/2010
Douglas Sirk edificou no cinema americano a função do melodrama. O que torna Sirk um diretor acima de uma certa bagacerice de seus assuntos é um elaborado estilo de filmar: sem pudores e pouco sutil para com as emoções de suas personagens, Sirk sabe todavia transformar o vulgar em nobre. É o que acontece em mais um de seus melodramas clássicos, Sublime obsessão (Magnificent obsession; 1954), refilmagem de um antigo filme do norte-americano John M. Stahl.

O jeitão de grande novelão para as massas, que fez sucesso de público e teve olhares desdenhosos dos críticos nos anos 50, aparece hoje incrustado na linguagem cinematográfica de Sublime obsessão, conferindo-lhe uma característica única na história do cinema. Não importa se os rompantes desajeitados de Rock Hudson ajudam a dar aspectos grosseiros às mutações de sua personagem durante a narrativa, um playboy inconsequente que se converte em bom cidadão. Pouco quer dizer que Jane Wyman incomode com sua textura de boa alma familiar um tanto quanto atoleimada. Não interessa muito se esta química Hudson-Wyman ainda não atingira os limites de Tudo o que o céu permite (1956). O que de fato assombra em Sublime obsessão é a privilegiada cabeça cinematográfica de Sirk, que articula objetos, sensações, seres, dramas espúrios, ingenuidades sociais com uma grandeza estética que é a permanência mesmo de seus filmes.

No começo de Sublime obsessão vemos o venturoso playboy, acompanhado duma garota, exercendo a velocidade num barco; quando a garota, assustada, desce, ele, exibicionista, aperta ainda mais na velocidade e o acidente acontece. São imagens assim que parecem extraídas duma telenovela. E a superposição de coincidências novelescas vai continuar. Um médico morre enquanto o aparelho que salvaria o médico é usado para salvar o acidentado playboy. O playboy busca aproximação com a viúva do médico. Nova coincidência desastrada: fugindo do playboy, a viúva é atropelada por um carro e fica cega. Sem que ela saiba, fazendo-se passar por outro, o playboy torna a aproximar-se da viúva agora cega e ambos se apaixonam. O bolo sentimental segue adiante, e, é claro, vai chegar o incrível final feliz, embora mais sugerido do que realizado.

Se há uma lição clara no cinema de Sirk, é esta: o melodrama tem uma função social, a função de revelar o cotidiano de nossos sentimentos. Pode-se aplicar a todos os grandes filmes de Sirk aquilo que escreveu sobre um deles o crítico norte-americano Roger Ebert: “Apreciar a cafonice de Palavras ao vento não é condescender com ela. Num grau maior do que percebemos, nossas vidas e decisões são determinadas por clichês e convenções. Filmes que exageram as nossas fantasias nos ajudam a vê-las — somos divertidos por elas e por nós mesmos. Elas purificam o ar.â€

Somente o engenho fílmico de Sirk poderia acreditar nas possibilidades de Hudson como intérprete. Fora dos filmes de Sirk, o patético jardineiro “moral†de Tudo o que o céu permite e o playboy forçadamente convertido de Sublime obsessão não convencem. Na arte de Sirk as personagens e o intérprete funcionam. É como as coisas são: cinematograficamente. É curioso pensar, a partir de Sirk, nas subversões da história do cinema. Nos anos 50 se assistia zombando aos atrapalhados melodramas dos roteiros de Sirk. Dos anos 80 para cá o cinéfilo vê os filmes de Sirk de joelhos: um ato religioso como é a apreciação de um Robert Bresson ou de um Ingmar Bergman.

NE: Há como material extra do DVD a edição do filme de 1935 de John M. Stahl:

O cineasta norte-americano John M. Stahl é um nome habitualmente esquecido que agora, na onda da revisão da filmografia americana do dinamarquês Douglas Sirk, pode estar sendo redescoberto. Stahl (nos anos 30 e 40) e Sirk (nos anos 40 e 50) buscaram as formas do melodrama como expressão cinematográfica que pudesse ser ao mesmo tempo espetáculo e criação artística; Sirk refilmou alguns clássicos de Stahl, dando-lhes uma atualidade plástica para os anos 50.

Sublime obsessão (Magnificent obsession; 1935), dirigido por John M. Stahl, foi a primeira versão do romance de Lloyd Douglas, retomada dezenove anos depois por Sirk. Mesmo com a opulência formal, em cores e sensações, que Sirk emprestou à sua obra-prima, não se pode deixar de afeiçoar-se às marcações precisas e sutis com que Stahl enovela o roteiro de Sarah Y. Mason na linguagem cinematográfica. Se do ponto de vista de cinema a criatividade de Sirk ultrapassa as possibilidades de Stahl, em matéria de sutileza e profundidade dos caracteres Stahl é mais refinado. Ele conta com um ator mais consistente no papel central, Robert Taylor, porém não é somente isto: o melodrama tal como é encenado por Stahl apresenta menos ingenuidades bobas que aquelas de Sirk, que se desdobra estilisticamente para superar algumas tolices temáticas (e o logra com alta classe, é bom dizer).

A situação básica da trama permanece, inclusive alguns diálogos e muitos fragmentos da história são os mesmos. Mas são dois filmes que divergem bastante, formal e tematicamente, apesar de sua origem literária comum (e de Sirk ter-se baseado na versão de Stahl). Há mudanças superficiais: o sobrenome da heroína, que em Sirk se chama Helene Philips e em Stahl vem a ser Helen Hudson (teria Sirk poupado o sobrenome de seu astro, Rock Hudson?). Outras alterações são significativamente narrativas: se a versão de Sirk começa com o barco veloz de Bob e termina a sequência com o acidente, no filme de Stahl a cena inicial vai culminar com a chegada das duas mulheres à residência onde o doutor Wayne Hudson acabou de morrer (e o acidente com Bob é somente referido nos diálogos, como causador indireto de Wayne). Outra sutil modificação de texto é a da metáfora da energia vital do falecido Wayne: enquanto no filme de Sirk o interlocutor de Bob acende uma lâmpada para metaforizar a “central elétrica†do ser humano, no filme de Stahl a simbologia nasce do ato de ligar uma boca dum fogão a gás para referir as transformações energéticas da vontade humana.

No frigir dos ovos, são dois belos filmes, diferentes a despeito do embrião comum, mas que merecem uma revisão apaixonada numa época em que se torce o nariz para o cinema de lágrimas, talvez porque o atual cinema de lágrimas seja mesmo espúrio e nada criativo. (Eron Fagundes)