Mais difícil do que encontrar um filme inovador é se deparar com um que nasceu de uma idéia original; não realizado com base em alguma outra mídia. Raros são os grandes filmes atualmente cujos roteiros podem ser chamados de “originais” e não “adaptados”. A Origem, de Christopher Nolan, é uma pérola que se enquadra em ambos quesitos. Dirigido e roteirizado pelo próprio Nolan – que desde seu primeiro filme, o ótimo e desconhecido Following de 98, não dirigiu um roteiro idealizado por si mesmo – A Origem foi realizado no ponto certo da carreira do cineasta. Após os mais independentes Amnésia e Insônia, Nolan fez Batman Begins e, desde então, têm encarado projetos mais ambiciosos em termos de escala e escopo. Da construção narrativa à concepção estética, O Grande Truque e O Cavaleiro das Trevas provaram que Nolan estava no topo do seu jogo e cada novo projeto seria um novo desafio para superar o anterior. Com A Origem, pode-se dizer que Nolan cumpriu este desafio e, de forma bem perigosa, aumentou ainda mais as apostas.
O enredo da obra é arriscado, para dizer o mínimo: em um mundo que possui a tecnologia necessária para inserir a mente de vários sujeitos em um único subconsciente, encontramos Cobb (Leonardo DiCaprio), um especialista. Quando o filme abre, Cobb está executando uma de suas extrações, no perigoso âmbito da mente humana enquanto o alvo sonha um espaço completamente planejado pelos ladrões. A execução do assalto coloca Cobb frente a frente com Saito (Ken Watanabe), que lhe oferece a liberdade de voltar aos Estados Unidos (de onde está foragido) caso cumprisse uma demanda com sua equipe. O plano seria não o da extração, mas da inserção.
Os primeiros minutos de A Origem, que já nos coloca dentro de um sonho em meio à uma extração, é impecável ao funcionar em diversos níveis. Primeiro, como introdução àquele mundo onírico e aos fatores que unem a realidade ao sonho (a água de uma banheira no plano real se torna um imenso jorro de água no sonho, a pessoa que morre no sonho apenas desperta dele, o importante ´chute´, o perigo das ´projeções´, entre outros detalhes importantes), e também como apresentação dos personagens e dos respectivos papéis que desempenham na execução de um trabalho. É também uma sequência tensa de ação, recheada de imaginação voluptuosa e uma concepção técnica impressionante. Basicamente, todos fatores que persistem na metragem até o desfecho da mesma, em exercício cinematográfico ensandecidamente belo.
Grande parte do longa-metragem é o planejamento da tal inserção que levará Cobb de volta aos filhos que teve que abandonar. Tal planejamento, que reserva para si muita informação, detalhes importantíssimos e recrutamento de novos personagens, poderia ter se revelado pedante e até mesmo expositivo. O roteiro de Nolan, porém, possui muita cautela ao lidar com o excesso de informação que precisa passar para a audiência. Nolan não fica repetindo pontos para a conveniência do espectador. O ritmo é ágil e o filme parece estar sempre em constante movimento. Caso o espectador não seja cativado pela obra logo em seus primeiros minutos, é bem capaz dele se perder na abundância de diálogos e intricados pontos – tudo muito relevante, por sinal. Além do mais, tudo isso é apresentado por meio de sequências visualmente arrebatadoras (como o sonho de Ariadne) e outras simplesmente fascinantes como aquela que traz um grupo de pessoas adormecidas dividindo um mesmo sonho. “O sonho tornou-se a realidade”, alega um personagem. E, claro, neste meio tempo o passado de Cobb começa a vir a tona, graças à curiosidade da jovem Ariadne (Ellen Page). Seu relacionamento no passado com a mulher, e a morte desta, surgem imprescindíveis para a trama e para os rumos finais da obra.
A Origem poderia facilmente ter se tornado em um mero exercício de estilo (e que estilo!), concentrando suas qualidades na ação e na execução de sequências tensas e empolgantes. Os personagens, no final das contas, que são as maiores virtudes da obra. Cobb, em particular, e o que é revelado ter existido entre ele e sua esposa. A causa de sua fuga, a ânsia de voltar aos filhos e a culpa que guarda por um ato específico. Há também o personagem de Robert Fisher (Cillian Murphy), o alvo da inserção. Seu relacionamento com o pai pavimenta um dos muitos núcleos emocionais do filme, atingindo um pique fortíssimo na que é possivelmente uma das sequências mais puramente belas que o Cinema já produziu neste século. Cada personagem, alias, revela uma importância. Talvez a mais substancial seja a Ariadne, a arquiteta do sonho. Sem ela, os ladrões se perderiam no subconsciente ilimitado do sujeito. E, sem isso, poderíamos facilmente acusar o filme de “pouco imaginativo” e “limitado”, já que os sonhos aqui seguem regras pré-estabelecidas. Ainda que, obviamente, revele inúmeras surpresas e sacadas importantes em sua desconstrução.
O elenco todo faz um formidável trabalho, entregando humor habitual e a densidade emocional necessária para fazer respectivas cenas darem certo. Destaque especial para Marion Cottilard (sempre ela), DiCaprio e Ken Watanabe, perfeito. Mas há espaço ainda para Page, Joseph Gordon-Levitt e a revelação Tom Hardy. Funcionam em perfeita união com a parte técnica essencial – os efeitos especiais inovadores, a direção de arte maravilhosa, a linda fotografia, a edição arrebatadora e a trilha sonora fantástica de Hans Zimmer (cuja lógica interna fascina). É um filme que te envolve gradativamente dentro de seu clima quase lúdico de perfeição cinematográfica. E, quando a inserção é finalmente executada, em um quase-clímax de uma hora de duração, é praticamente impossível conter a empolgação e o êxtase praticamente divino causado pela arquitetura sensorial de Christopher Nolan. Em entrevista, Nolan disse que os papéis que os personagens executam no sonho são similares ao de uma equipe técnica na realização de um filme. Cobb o diretor, Arthur o produtor, Ariadne a designer de produção, Eames o ator, Saito o estúdio e Fischer, a audiência. Se há qualquer metalinguagem em A Origem, é a de simplesmente sugerir o quanto a sétima arte representa – em seu núcleo – pura fantasia e sonho. E Nolan insere na audiência a simples idéia do quanto o Cinema consegue ser mágico e profundamente essencial. (Wally Soares)
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Haverá quem torça a cara para os excessos físicos da produção anglo-americana A origem (Inception; 2010), provavelmente o ponto crucial e de convergência da filmografia do diretor inglês Christopher Nolan. Sendo uma narrativa sobre a vida mental e seus labirintos confusos, mais ou menos como o clássico O ano passado em Marienbad (1961), do francês Alain Resnais (uma das origens evidentes da realização de Nolan), ou Império dos sonhos (2006), do americano David Lynch (este um dos melhores filmes da década), A origem faz muitas concessões à indústria, com desvios para ações demasiadas e um barroquismo de som e imagem que tem mais a ver com as facilidades comerciais que com uma experimentação formal que radicaliza a experiência cerebral do espectador; mesmo assim, A origem traz um impacto fascinante em suas imagens e propõe delírios visuais que convidam o observador a uma reflexão de sonho. Digamos que o lado inteligente de A origem abafa suas possíveis debilidades oriundas dos excessos físicos acima aludidos.
É fato que falta a Nolan os atributos revolucionários de Resnais e a transcendência dos ajustes cinematográfico-oníricos de Lynch. Mas em A origem ele logra equilibrar os possíveis embustes de um cinema comercial com uma capacidade de expor com brilho e sedução as complexidades do funcionamento do cérebro humano. De uma certa maneira A origem topa resistência no observador mais exigente em função da excessiva carga de efeitos visuais fáceis e de tiroteios e correrias que remetem às narrativas de ação. De uma outra maneira o filma de Nolan embrulha a percepção do espectador dos filmes hollywoodianos de sempre porque usa até abusivamente de conceitos complicados da psicanálise e do universo dos sonhos. No frigir dos ovos, é uma obra que faz bem uma coisa e outra, embora nem uma coisa nem outra se aproxime da perfeição.
Leonardo DiCaprio é o astro da vez de Nolan. Ele vive uma criatura perdida num universo de imagens e imaginação, e é curioso observar as similitudes da personagem de Nolan com aquela que DiCaprio viveu para Martin Scorsese, num registro cinematográfico muito diferente, em Ilha do medo (2010). À volta de DiCaprio, algumas estrelas secundárias. Michael Caine tem breves aparições. A francesa Marion Cotillard (vista em Piaf, um hino ao amor, 2007), de Olivier Dahan, e Inimigos públicos, 2009, de Michael Mann) é a esposa falecida ou camuflada em outras camadas de imagens da criatura de DiCaprio. A jovem canadense Ellen Page (revelada em Meninamá.com, 2005, de David Slade, e Juno, 2007, de Jason Reitman) é uma espécie de figura-guia dos passos do protagonista de DiCaprio.
Dormir, sonhar, não mais. O sonho como uma morte em vista, ou o sonho como uma outra vida. Dormir, sonhar: o resto é o silêncio shakespeareano. E talvez nenhuma arte tenha o dom que o cinema tem de materializar a abstração dos sonhos. (Eron Fagundes)