Crítica sobre o filme "Cisne Negro":

Wally Soares
Cisne Negro Por Wally Soares
| Data: 12/06/2011

Existencialista até o última unha encravada, Cisne Negro é uma jornada emocional (e bastante literal) até nossos mais perturbados e lúgubres sonhos. Revestido de referências cinematográficas, literárias e, claro, psicológicas, o quinto longa-metragem de Darren Aronofsky não hesita, esconde ou maquia demais. Dos primeiros minutos de projeção, por meio da fotografia granulada e dos movimentos sempre muito íntimos, já captamos as verdadeiras intenções do cineasta – como também a própria essência da história que quer contar. Apesar de primar pela subjetividade quanto ao ponto de vista do objeto de estudo – a bailarina Nina Sayers – Aronofsky não quer se esconder atrás de simbolismos aleatórios impostos na tela. Seu jogo de reflexos, ilusões e metáforas está sempre muito explícito; por outro lado, mantém a veia subjetiva no relacionar de Nina com a realidade ambígua que a cerca, por meio da sutileza tornando a “persona” de Nina muito mais adepta de quem a assiste. Esta oscilação perigosa do literal com o subjetivo poderia ter saído pela culatra, mas na verdade faz o filme funcionar gloriosamente tanto como exercício cinematográfico quanto como imersão existencial.

A inspiração da história de Cisne Negro advém de “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, mas seria tolice colocar a peça de balé como única referência. Aronofsky e os roteiristas Heyman, Heinz e McLaughlin vão de Kafka a Dostoiévski, sempre primando pelo ardor psicológico e o tom opressor. É no poema “O Duplo” que Aronofsky confessa ter se baseado, mas é inegável ver um pouco de “A Metamorfose” na trajetória de Nina Sayers. Somos introduzidos à bailarina como uma jovem inocente e ingênua, de voz infantil e cujos trejeitos revelam todo um relacionamento de repressão com relação a sua mãe, Erica. A partir do momento que vence o papel principal da peça de Tchaikovsky, Nina é exposta de maneira irreversível à pura ambição de arte; de perfeição e, logo, puro êxtase. Sua técnica perfeita como bailarina é logo desafiada quando precisa incorporar, além do cisne branco, o papel de cisne negro, que requer uma entrega muito mais emocional e espiritual. Tal ambição leva Nina à uma imersão impressionante, escancarando por sua vez uma esquizofrenia velada.

Ainda que o roteiro seja ótimo (com um dos escritores já tendo trabalhado com Aronofsky em O Lutador, construindo a personagem principal de forma fascinante e pontuando seus relacionamentos e despertares com forte cunho psicológico, é na direção vertiginosa de Aronofsky que o filme ganha todo seu poder, seu “tour de force”. O longa-metragem é dirigido de tal forma que a estética de sobrepõe ao roteiro enquanto experiência puramente sensorial. A qualidade do texto é irrepreensível, mas o que faz da jornada de Nina cinematografia tão magistral é aquilo que vemos orquestrados em celulóide. É a estrutura concebida não por atos, eventos sequenciais ou mera ordem cronológica, mas por uma forte instigação emocional, concebendo uma narrativa totalmente amparada na inconsciência de Nina. Assim, seguimos o desenrolar mediante o ponto de vista da mesma. O que por sua vez faz o filme oscilar entre os já citados patamares explícitos e implícitos, que se convergem a todo momento para materializar os devaneios um tanto conflitantes da personagem que, ao mesmo tempo em que evoluiu, desmorona. Abraçando seu id e, por sua vez, abandonando seu superego.

E é inevitável mencionar id, ego e superego quando se analisa Cisne Negro, visto que a abordagem do diretor e dos roteiristas é totalmente voltada para a visão existencial e, portanto, psicológica. As próprias cores que foram adotadas (o preto, o branco e o vermelho) espelham esta vontade de esmiuçar a personagem e criar uma obra que, apesar do tom explícito visualmente, depende inteiramente da subjetividade para induzir a audiência para dentro do pesadelo de Nina. Não é por nada que o filme tem início com um sonho da mesma; desde o início estamos imersos em seu inconsciente. Testemunhas, por sua vez, do despertar de tal pesadelo, que aos poucos se concretiza até vir a tona em sua plenitude por meio de sequência angustiante. Que, apesar das circunstâncias, é dotada de um realismo impressionante. Cortesia da fotografia de Matthew Libatique, que adota o mesmo estilo visto anteriormente em O Lutador; atingindo o visceral por meio da imagem sempre granulada, quase documentada. Os movimentos de câmera também ajudam muito neste aspecto que, ao colaborarem para a narrativa centrada sob o ponto de vista da Nina, surgem diversamente caminhando por de trás da personagem, como se a estivéssemos seguindo constantemente.

No epicentro de Cisne Negro está a performance extraordinária de Natalie Portman. A metamorfose de sua personagem deve muito à atuação de Portman, que começa o filme pintando a ingenuidade da personagem por meio de voz e postura e gradativamente abandona tais qualidades ao ver sua sexualidade explorada – que, em primeira análise, pode ter a libertado fisicamente e a introduzido ao alter-ego que começa a abraçar naquele momento. O mais interessante desta jornada da personagem, porém, é como se dá o relacionamento com sua mãe, a qual finca vínculos conflitantes com a filha no que diz respeito ao apoio à arte dela e, ao mesmo tempo, a repreensão tendo como base sua resignação diante do próprio sonho de ser bailarina (provavelmente interrompido pelo nascimento da filha). E a performance de Barbara Hershey é igualmente notável. Bem como as de Mila Kunis, Vincent Cassell e uma participação arrepiante de Winona Ryder.

Como não poderia deixar de ser, como uma obra totalmente voltada para Tchaikovsky, a música de Cisne Negro é magnífica. Composta por Clint Mansell, a trilha sonora distorce muitas das composições originais de “O Lago dos Cisnes”, ao mesmo tempo em que cria novos maravilhosos arranjos para acompanhar o show – e o filme é em si um espetáculo, surgindo como uma tragédia no sentido mais clássico. Classicismo este revitalizado pela linguagem ousada de Aronofsky. Seus planos são lindos e praticamente todos construídos em cima de reflexos (note que quase toda cena terá um espelho presente), criando ainda sequências revestidas de detalhes que só poderão ser denotados diante de estudo e meticulosa observação (discuto aqui a cena da boate, que esconde inúmeras imagens por entre os jogos de luzes). Intenso em sua experiência arrebatadora e uma imersão das mais assombrosas, despertar da sessão de Cisne Negro é acordar de um pesadelo – e nunca foi tão bom dizer isso de um filme.