Piotr Ilitch Tchaikovsky foi provavelmente o compositor clássico romântico mais importante da história. Infeliz no amor (o compositor era homossexual não assumido e nunca teve alguma de suas paixões correspondidas), ele transpunha para seus balés, sinfonias, e concertos toda a dor que ele sentia. "O Lago dos Cisnes", primeiro ballet do compositor, transpõe bem sua dor, sendo este provavelmente seu balé mais trágico e que mais anunciava sua dor. Mal imaginou ele que, 133 anos depois, um cineasta apaixonado por perguntas sem resposta e uma trupe de roteiristas iria transpor seu ballet com tamanha perfeição, dor e melancolia.
Aronofosky sempre foi conhecido em tratar nos seus filmes questionamentos e, principalmente, obsessões: em Pi: A Obsessão era por equações insolúveis, em Requiém Para um Sonho os sonhos destruídos pela obsessão às drogas, em Fonte da Vida a obsessão era a vida eterna e em O Lutador a obsessão era ultrapassar os limites humanos através da luta. Mas, qual é a obsessão de Cisne Negro afinal? Simples: provavelmente a obsessão mais cruel que existe na humanidade: a perfeição.
Junte então um ballet incansável e eterno, à um diretor obcecado por obsessões e o resultado é o melhor filme do ano de 2010, indicado à 5 Oscar® (filme, direção, atriz, fotografia e edição - vencedor do Oscar® de melhor atriz) um dos maiores do gênero e a maior atuação da carreira de Natalie Portman. Aqui, Natalie vive Nina, uma bailarina obcecada pela dança que ao ser escolhida para protagonizar o balé do "Lago dos Cisnes" começa um tormento e calvário pessoal, que culminam em uma veracidade impressionante com a história que está sendo adaptada.
O grande problema de Nina é que ela quer ser perfeita e, grande parte das pessoas que vivem em volta dela não colaboram para a sua lucidez: enquanto sua mãe é controladora ao extremo (vivida por Barbara Hershey), jogando sempre na cara da filha que ela deixou a carreira de bailarina por causa de sua gravidez (e aqui temos uma situação muito parecida com Rapunzel de Enrolados - ambas as mães são controladoras, e incentivam as filhas a fazerem coisas apenas para prazer delas mesmas e não para felicidade das filhas), seu "chefe", o renomado coreógrafo Thomas Leroy (Vincent Cassel) concorda que perfeição existe sim, e tem a ver com "se entregar ao papel" sempre criticando a garota, dizendo que ela não conseguiria interpretar o cisne negro, além da ex prima “ballerina” Beth (Winona Ryder) que odeia Nina por achar que ela "roubou" o seu lugar. Além disto temos Lily (Mila Kunis) a "Odile" da história, o qual tem um personagem dificílimo- ao mesmo tempo que é querida é ameaçadora, que é amiga é inimiga, e mais do que isso - causa estranheza em Nina tanto quanto atração na mesma. Com todos estes personagens em volta da protagonista, é impossível que a mesma se sinta confortável consigo mesma.
E esse desconforto e tristeza de não conseguir atingir o seus objetivos, vai fazendo com que a moça tenha mais e mais alucinações, não conseguindo diferenciar o real do imaginário, a personagem da “personificadora”, a luta e a morte, fazendo do filme uma espécie de transposição de "O lago..." para os dias atuais. A ambiguidade das situações surge desde o primeiro instante, com espelhos por todo o lado, e alucinações inexistentes. Até a tão comentada cena de sexo entre Nina e Lilly, não passa de um sonho da protagonista (o que se observa desde o primeiro momento, já que se Lilly estivesse na casa de Nina, sua mãe claramente teria percebido a presença da garota, além de Nina e Lilly falarem a mesma frase no diálogo com Erica).
Impecável em todos os sentidos, Cisne Negro é um triunfo. A trilha sonora, absurdamente perfeita de Clint Mansell, moldura as cenas partindo das composições de Tchaikovsky e criando uma sonoridade totalmente nova que combina inteiramente com a composição original. A fotografia, de Matthew Libattique, também é fabulosa, fazendo com que cada cena pareça uma cena de ballet e sonho, misturando o real e o imaginário. Já os figurinos de Amy Wescott, em parceria com a “Rodarte”, conseguem captar a alma da personagem, ao fazer com que seus tons de roupa mudem de acordo com a mudança da personalidade da protagonista. E a mixagem de som também é grande colaboradora, ao fazer ecoar os sons de um público aclamando Nina, no meio de uma boate.
Mas o show mesmo aqui é de Natalie, que se entrega ao papel tanto quanto Nina, doando-se fisicamente e psicologicamente à personagem. Sentimos paixão, pena e tristeza por Nina, acompanhamos ela em cada passo, cada alucinação, cada dor que se revela inexistente, e todo seu sucesso e tragédia. Trata-se aqui de uma história de bastidores, de pressão, de entrega, sendo que grande parte da potencia do filme não seria possível se Natalie não fosse tão convincente e assustadora (e por isso mesmo fez com que ela vencesse merecidamente o Oscar de melhor atriz neste ano).
Por fim posso dizer que Aronofosky conseguiu aqui uma obra prima, que cai tão a fundo no tema do filme quanto Nina- em sua obsessão pela perfeição, criou-se uma obra perfeita, um quebra cabeça soberbo, sob o qual Tchaikovsky com certeza se orgulharia, e se enxergaria na protagonista. Nunca uma biografia de algum compositor foi tão fiel quanto "Cisne Negro". Ironicamente, é o retrato mais fiel do compositor russo.