Crítica sobre o filme "Ilha do Medo":

Wally Soares
Ilha do Medo Por Wally Soares
| Data: 03/08/2010

O nova-iorquino preferido do cinema, Martin Scorsese anda fazendo o que todo veterano cineasta pode se dar ao luxo de fazer: ele está ousando. Ou, em outras palavras, se arriscando. A flexibilidade do cineasta não é novidade alguma, especialmente para quem viu Kundun, Vivendo no Limite e O Aviador. Em Ilha do Medo, ele parece realizar um sonho que sempre teve: o de brincar de Hitchcock. O que, na verdade, ele já fez. Em 2007, encontrou três páginas e meia de um suposto roteiro do mestre do suspense. Ele decidiu filmar o script perdido, rendendo o excelente curta-metragem chamado Key to Reserva. Com este seu mais novo trabalho, porém, Scorsese leva suas ambições à altura. A película, baseada em romance do autor Dennis Lehane, usa a base policial para criar uma atmosférica e tensa experiência cinematográfica, dosada por um clima psicológico intenso. Ao desenrolar da narrativa, estilizada e construída em cima de minúcias, a complexidade do texto surpreende, culminando em um desfecho verdadeiramente espetacular.

A data é 1954, em Boston. O policial federal Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) chega à ilha remota chamada Shutter Island acompanhado de seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo) com o intuito de investigar um desaparecimento. Na ilha, existe um grande e elaborado hospício, de onde foi registrado o desaparecimento misterioso de uma paciente que matou os três filhos afogados. Claramente angustiado, Teddy tenta lidar com os mistérios da instituição ao passo que sua mente divaga para os temores de seu passado – sua esposa morreu em incêndio causado por um lunático, que por sua vez encontra-se preso no hospício.

 

Roteirizado por Laeta Kalogridis, cujos trabalhos anteriores assustam – é dela o texto do horrível Desbravadores, como também do melodramático Alexandre e do desconexo Guardiões da Noite – Ilha do Medo é surpreendentemente composto com imensa habilidade, especialmente pelo arrebatador olhar intimista que lança sobre seu personagem principal. Teddy Daniels é, afinal, a alma do filme. Não há dúvida de que Kalogridis foi beneficiada pelo que parece ser um material fortíssimo. E o poder de Ilha do Medo é dignamente realçado por detalhes de um roteiro que não se importa em prolongar a duração para que exista uma atenção maior a certas minúcias. Dito isso, é necessário notar que o roteiro é, sim, imperfeito. Certas cenas soam desnecessárias e, no plano geral, o texto não é beneficiado por certos vícios estilísticos de Scorsese – que vez ou outra pode se perder na sua própria paixão pelo Cinema.

 

Ainda que possua estes mínimos pecadilhos, Ilha do Medo dificilmente inspira algum sentimento de contradição ou indiferença. A narrativa é meticulosamente composta e a direção fantástica de Scorsese cria planos de absoluta beleza, elevando a película a uma perfeição estética extraordinária. Como nos melhores filmes do gênero, a obra se apóia na força da atmosfera, articulada aqui pela fotografia magistral de Robert Richardson e pela trilha sonora assombrosa. Uma união soberba sintetizada pelo plano que abre o filme, composto por um navio surgindo em meio a forte névoa ao som da tenebrosa sinfonia Passacaglia. A aflição provocada por esta sequência de abertura permeia pelo restante da metragem, enquanto somos hipnotizados pela direção de Scorsese, sempre atencioso ao poder simbólico que certas imagens podem vir a possuir, ao passo que almeja extrair poesia fantástica de certos enquadramentos. O que dizer, por exemplo, da imagem inebriante que traz o personagem de Teddy Daniels abraçando a figura de sua mulher que, ensopada, sangrando e carbonizada, começa a derreter-se em suas mãos?

 

Configurando um verdadeiro estudo de personagem, a película é extremamente bem sucedida ao inserir o espectador na mente do personagem. Portanto, não podemos deixar de elogiar detalhes como um copo desaparecendo ou uma peça de roupa ressurgindo em outra pessoa. Não são erros de continuidade, mas importantes detalhes que configuram a submersão da audiência na mente do personagem – nós vemos aquele mundo pelos seus olhos. E, portanto, somos diversamente realocados a outro espaço no tempo por meio de flashbacks que caracterizam lembranças e pesadelos do próprio personagem. Tais flashbacks surgem imprescindíveis para a estrutura narrativa e, magnificamente fotografados, atingem um tom claramente diferenciado e luminoso – contrapondo-se, portanto, da realidade na ilha. O que realmente faz o personagem de Teddy ressoar na audiência, porém, é o poder da performance de Leonardo DiCaprio – que nunca esteve melhor. Sua entrega ao personagem é absoluta e garante uma cena ao clímax que é tão aterrorizante quanto bela, consagrando o talento do ator que evolui nas mãos de Scorsese a cada trabalho.

 

Repleto de nomes interessantes, o elenco não abre espaço para nenhuma atuação mais engrandecida – o espaço de cada ator é limitado pela importância de Teddy na linha narrativa – mas resulta em diversas atuações virtuosas. O destaque fica por conta de Patricia Clarkson (em cena excepcional) e Mark Ruffalo (que almeja dizer tanto com apenas olhares). Ainda vale lembrar do memorável Elias Koteas e da sempre ótima Emily Mortimer – e, claro, do excelente Jackie Earl Haley. Personagens que fazem parte de um jogo elaborado e conciso, ancorado no terror psicológico ao abrir uma verdadeira ferida no diagnóstico da vulnerável mente humana. Scorsese não quer saber de certo ou errado, ele quer investigar os extremos entre a realidade e a ficção – e, por consequência, a natureza subjetiva do ser humano em ver o mundo que o cerca. Ilha do Medo é uma análise da insanidade, do medo e da paranóia. É também muito triste em seu retrato de um homem eternamente marcado por trágicos eventos de seu passado. O desfecho, sutil e cortante, irá pairar na sua mente por um longo tempo.