Martin Scorsese, um dos mestres da direção cinematográfica americana nos anos 70, chegou a afundar em alguns fracassos ou incompreensões e nas drogas nos anos 80. Como se expressa na narrativa ensaística de Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood (1998), livro escrito pelo americano Peter Biskind, em determinado momento da década de 80 parecia que a filmografia de Scorsese (e de alguns outros) estaria encerrada: seria um morto-vivo do cinema, um anacrônico dos tempos que viriam. Os anos provaram que este sentimento estava errado. Scorsese deu a volta por cima e seguiu fazendo filmes cuja exuberância formal e agressividade temática atrai inapelavelmente o observador de cinema.
Ilha do medo (Shutter island; 2010), o novo Scorsese e que é extraído dum romance de Dennis Lehane, tem aquela seiva vital das narrativas de Scorsese que não se via, num filme de ficção dele, desde Gangues de Nova York (2002). Há em Ilha do medo um onirismo grotesco e assustador que poderia remeter a uma das influências do cinema de Scorsese, o realizador italiano Federico Fellini, e certas imagens perversas e alucinadas de Ilha do medo parecem herdeiras das convulsões mágicas de Julieta dos espíritos (1965), de Fellini. Como a Julieta de Fellini, o protagonista do filme de Scorsese surge inicialmente como uma personagem burguesa, um detetive que é encaminhado a uma ilha para investigar a fuga duma paciente dum manicômio judiciário, mas com o andar da carruagem este detetive é alterado em sua perspectiva em suas alucinações com seu obscuro passado; a loucura sombria da ilha transforma a personagem central e ela adquire a silhueta dos perigosos loucos (uma fauna felliniana, sim) que ele está investigando. Uma das extravagâncias metafóricas que Scorsese extrai da literatura de Lehane adaptando a seu cinema é definir a violência como um presente de Deus: que seria do artista Scorsese sem ela?
Em Ilha do medo Scorsese resgata sua extraordinária capacidade para, pelos movimentos de câmara e pelos enquadramentos, criar sua própria claustrofobia cinematográfica, algo palpável numa filmografia que detém títulos como Motorista de táxi (1976) e Depois de horas (1985). A ilha filmada por Scorsese em seu filme é um dos achados cênicos do ano cinematográfico.
E o colorido elenco de Ilha do medo, com um trêfego e já madurão Leonardo DiCaprio, um circunspecto Mark Ruffalo e aparições estranhas e sinuosas como Ben Kinsgely e Max Von Sydow, ajudam a compor um clima inusitado para o filme de Martin Scorsese.