A mais nova adaptação do complexo Stephen King, desta vez pelo sujeito que sempre o compreendeu, o visionário Frank Darabont (Um Sonho de Liberdade, À Espera de um Milagre), termina com pouco mais de duas horas de projeção e, ainda assim, não termina com você. Assombrosa, a nota final dolorida do filme é impactante, cortante e reflexiva como raras. Começo, a partir disso, valorizar ainda mais profundamente a obra da qual presenciei. Pessimista, o filme é uma alegoria intensa das nossas maiores inseguranças. Ao retratar a transformação de diversas pessoas, de diferentes etnias, culturas e idades, sendo oprimidas pelo medo, e como elas reagirão á esse sentimento humano cada vez mais presente na sociedade de hoje, o filme funciona como uma reflexão vibrante e intensa, nunca deixa de nos instigar, entreter e, em alguns casos, nos desnortear. Exemplo de seu desfecho que é, além de fortemente corajoso, profundamente coerente e pesado, podendo, em muitos casos, repelir o espectador com mais cautela.
Até chegar, porém, á esse pique polêmico, somos sugados misteriosamente pela aura engenhosamente bem desenhada por Darabont, que cria um verdadeiro clima de filme do gênero. Inicia seu filme de uma forma silenciosa e, aos poucos, vai nos puxando para mais de perto dos personagens, até sermos completamente inseridos na mesma situação à que eles estão submetidos. Para compreender o filme, e desfrutá-lo como ele mereça ser valorizado, é preciso deixar que ele te carregue. Entre no filme, viva a situação, analise os personagens. Não é tarefa difícil. Darabont deixa seus personagens tão bem delineados, com diálogos ótimos e, diversamente, diabolicamente ácidos, que o jogo psicológico mortificante que toma conta do cenário se torna logo irresistível. Seu panorama de personalidades, sujeitos e tipos é genial, enviando fortes socos no estômago e uma simbólica representação da hipocrisia da igreja, intensa tanto em suas implicações psicológicas quanto em sua crítica à manipulação. À frente deste símbolo, uma atuação perfeita da sempre grande Marcia Gay Harden, que interpreta sua fanática religiosa com tamanha "genuidade" que assusta. Alias, o grande mérito do filme de Darabont é não ser gratuito. Existem seqüências tensas envolvendo as misteriosas criaturas do nevoeiro, mas o terror começa mesmo quando nós seres humanos começamos a nos atacar, seja por vulnerabilidade, fraqueza, ou pura mediocridade. Por isso a urgência da pergunta de certo personagem para o outro durante a projeção: "Você não têm muita fé na humanidade né?".
E O Nevoeiro vai construindo essa atmosfera pesada de uma sociedade de pessoas deixadas á deriva do caos. É, a todo momento, perfeito ao nos mostrar reações autênticas aos acontecimentos e sentimentos humanos sempre certeiros, nunca fictícios ou colocados para simples artifício dramático. É tudo muito intenso. E, após muitas cenas de imenso entretenimento (é fácil vibrar e se deixar levar pela busca de certos personagens pela sobrevivência), vamos percebendo o quanto o trabalho é de grande brilhantismo. É muito mais do que uma simples obra de monstros. É sobre os outros monstros, aqueles disfarces, que seguram a Bíblia em uma mão enquanto escondem uma arma na outra, aqueles com quem lidamos todos os dias e tememos tanto ao sair nas ruas. O maravilhoso filme de Darabont é esse angustiante relato, que nos envia para fora desnorteados, pensativos, assombrados. O que leva o ser humano a cometer certos atos? O quão somos fracos diante do inimaginável? E, acima de tudo, quais são os monstros que criamos?
Composto por um habilidoso elenco, incluí a já citada soberba Harden, mas ainda atuações formidáveis de Toby Jones e outros coadjuvantes de presença. Quanto à Thomas Jane, nunca o admirei, mas tem momentos neste filme em que ele demonstra um certo talento admirável. O desfecho, por si só, teria sido ainda melhor se Jane estivesse mais confortável no papel, mas Darabont, o diretor sábio que é, realiza movimentos de câmera impressionantes, uma ambientação incontestável e aumenta sua música comovente ao último volume. Manipulados? Provavelmente. Mas bem manipulados, como o bom cinema deixa de fazer tanto e tão incansavelmente nestes mesmo filmes do gênero já desgastados. O Nevoeiro é muito mais que isso. É uma obra de arte excepcional tanto em seu conteúdo psicológico quanto em sua impressão elétrica na audiência. Alguns sairão tão aflitos do choque que possivelmente não compreenderão. Afinal, o filme é corajoso demais para ser digerível por todos. Não espere um blockbuster, mas se deliciem com cinema de alta qualidade e, acima de tudo, um suspense maravilhosamente surpreendente e empolgante.