Crítica sobre o filme "Amadeus":

Eron Duarte Fagundes
Amadeus Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/11/1998

A personagem central de Amadeus (1984), certamente a obra-prima do realizador tcheco-eslovaco Milos Forman, não é Mozart, o gênio, mas Salieri, o medíocre e invejoso músico. No fim da vida, confinado em um asilo, Salieri deita suas confissões para um padre, e as evocações de seus conflitos musicais com Mozart (mistura de atração e repulsão) se revestem de blasfêmia contra Deus, profissão de fé numa religião anti-Deus (há até uma imagem de Cristo jogada ao fogo), porque este Ser Supremo preferiu depositar num moleque obsceno aquilo que a consciência crítica de Salieri considerava como o instrumento da voz divina, a música. Nunca Forman foi tão amargo ao mostrar na tela sua afeição pelos gênios desbocados, irreverentes, mal-educados; esta amargura vem da visão desesperançada que um medíocre tem deste gênio. O passeio final de Salieri pelo corredor de loucos comuns (“Medíocres de todo o mundo, eu, príncipe dos medíocres, vos absolvo!”) é agudamente trágico; o desempenho extraordinário de F. Murray Abrahan compõe uma capa cheia de saliências para este ser resgatado das trevas que é Salieri. No filme Mozart é um co-adjuvante para a existência desta alma tortuosa; Mozart, como o falso doido de Um estranho no ninho (1975) e o pornógrafo de O povo contra Larry Flynt (1996), é uma força que desafia o sistema, mas em Amadeus esta força adquire uma dimensão inusitada graças à consciência de Salieri, o protagonista abissal.

É também em Amadeus que temos uma das mais deslumbrantes reconstituições de época do cinema contemporâneo, algo que se dilui um pouco na visão em tela pequena, embora a notável definição visual da tecnologia em dvd seja ainda capaz de encher os olhos do espectador. Extraordinariamente ordenado em sua imponência musical (Mozart, mais Mozart!), Amadeus determinou a volta de Forman à sua Praga natal, depois do pouco brilho de Na época do ragtime (1981), uma tentativa de mergulhar na literatura norte-americana por meio das páginas de E.L. Doctorow; se o romance de Doctorow é excelente, o filme de Forman fazia tantas concessões à indústria que descaracterizava a crítica histórica de Doctorow. Amadeus, então, é a recuperação: um belo super-espetáculo em que não há concessões. A alma verdadeira de Forman está ali, intacta, como nos tempos de seus filmes tchecos, aquelas belas e despojadas crônicas como Os amores de uma loira (1965).