Crítica sobre o filme "Amor À Flor da Pele":

Eron Duarte Fagundes
Amor À Flor da Pele Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 28/12/2004

A revisão de um filme tão rico quanto Amor à flor da pele (2000), do chinês Wong Kar-Wai, serve para que o espectador concentre sua atenção nos detalhes da encenação, aprofundando-os. O rigor dos planos e de montagem pode ser apreciado a cada fotograma. O homem e a mulher estão à mesa, a câmara fixa os pratos repletos de comida, movimenta-se dum prato para outro, retorna ao primeiro prato, acompanhando os gestos alimentares das mãos das personagens sem que a habitual progressão dramática dos filmes comuns aconteça.

Kar-Wai refaz, à sua maneira, o cinema interiorizado e metafísico de Michelangelo Antonioni. Seu senso do espaço cinematográfico é tão admirável quanto o do realizador italiano. O momento do corte casa-se com o ângulo do quadro que se adequa ao movimento de câmara que fecha com o diálogo e o gesto do ator. A cor e a música sublinham a estilização da imagem.

Kar-Wai conta uma história de adultério com bastante sutileza. A revelação de que os cônjuges dos protagonistas têm um caso é feita de maneira lenta e elíptica, as coisas são mais sugeridas do que ditas ou mostradas. Trata-se de um dos raros filmes de adultério que não tem abraços nem beijos: muito menos cenas de cama. O caso de amor entre os protagonistas é platônico: não se materializa. É uma daquelas relações pessoais complexas que de quando em quando bate no espírito humano. Amamos profundamente o outro sem tomar atitude alguma.

As abstrações da parte final da narrativa, com a inserção dum plano histórico (a visita do general DeGaulle ao Camboja) e imponentes ruínas pelas quais transita a personagem do homem, alargam os limites da experimentação cinematográfica de Kar-Wai. Os letreiros inseridos no início e depois no fim do filme remetem ao procedimento do francês Jean-Luc Godard, cuja fragmentação de filmar esteve mais próxima dos filmes anteriores de Kar-Wai.

Como dizem as frases finais colocadas na tela, Amor à flor da pele dá a impressão de alguém que espia, por uma janela embaçada, algo que não pode tocar. Este algo é sempre o passado: época passada caracterizada pela cena (documental) de DeGaulle no Camboja. Os intersticiais planos de um grande relógio são irônicos: o tempo que interessa a Kar-Wai não é o do relógio; é o tempo interior, a metamorfose do espaço cinematográfico em algo interior, psicológico, metafísico, que não se pode tocar – embaçado.