“Essa factibilidade de crítica impressionista é uma evidência. Poucas vezes se tem a oportunidade de voltar a analisar um filme, a repensá-lo em função do ofício de se ver sempre filmes novos e opinar sobre os mesmos. Os filmes que desagradaram continuam desagradáveis para todo o sempre. Por que revê-los? A quem importa uma revisão de opinião, uma correção de rumos? Só ao espectador crítico, que pode temer expor, dessa forma, uma faceta de sua personalidade: os seus erros." (Tuio Becker, num Correio do Povo de antigamente - anos 80 do século passado).
Quando se tem vinte e quatro anos e se é um espectador de cinema ainda tateante e eivado de muitos livros e se vai ver uma obra tão visualmente requintada e de narrativa tão perplexa e desarticulada quanto Apocalypse Now (1979), do realizador norte-americano Francis Ford Coppola, as possibilidades de erro de julgamento são muitas. Lembro-me que me impressionei com a força da imagem de Coppola concebida a partir da beleza da fotografia de Vittorio Storarro e com o poder persuasivo da câmara vertiginosa que descia dos helicópteros sobre Saigon e com o inigualável jogo de luz e sombra que batia na tela; mas senti falta do "pé crítico"no roteiro que Coppola e John Milius (este um artesão de filmes de aventura há muito desaparecido das telas) extraíram, muito livremente, da novela de Joseph Conrad (que eu ainda não tinha lido) O coração das trevas (1902), transpondo a ação da selva africana para o interior do Vietnã, e detestei a excentricidade do cineasta de A conversação (1974), ainda hoje, e a despeito do novo conceito que atribuo a Apocalypse Now, meu Coppola favorito; foi assim naquele final de 1979, apesar de sua beleza o filme de guerra de Coppola era somente uma desconversa sobre o conflito asiático bastante comum no cinema ianque daquele final de década.
Mais de vinte anos passados, o filme torna aos cinemas rebatizado: Apocalypse Now Redux (1979/2000). E Coppola acrescenta-lhe quarenta e nove minutos, totalizando uma projeção de 196 minutos. Como diz o título deste artigo, chupado de um daqueles brilhantes ensaios que o gaúcho Tuio Becker escrevia na imprensa local nos anos 80, a revisão do filme de Coppola é a descoberta de outro. Eu mudei nestas últimas duas décadas, embora ainda aqui e ali minha formação originalmente literária (que esforço confessar este defeito apontado por tantos amigos cinéfilos com que me defrontei ferrenhamente na juventude!) sinta falta de um "pé crítico"; aprendi a gostar de cinema para além daquele cinema conversado e do cotidiano que amei perdidamente em O joelho de Claire (1970), de Eric Rohmer: curioso, a extensa seqüência do encontro com os franceses em Apocalypse Now Redux parece isto mesmo, um filme francês, conversado, expelindo teorias verbais, concluindo-se com a bonita seqüência amorosa do soldado com a garota por entre as cortinas.
Continuo impressionando-me com a intensidade visual do grande e exagerado filme de Coppola. Mas passei a descobrir mais coisas. Como ocorre em algumas realizações do italiano Federico Fellini da fase final, Apocalypse Now é pura excentricidade, pura quebra de regras narrativas sem se afastar duma experimentação comercial; no meio da guerra, a embarcação dá com um show de mulheres cercado de luzes, depois os soldados amam as "coelhinhas" em cenas de diálogos patéticos e visual fragmentado e atmosfera contidamente erótica. O acúmulo de cenas belas (a mais fantástica é a dos helicópteros que baixam a Saigon bombardeando-a, num delírio metafórico -todo o filme é um delírio metafórico-ao som de Richard Wagner) vai gerar um filme esplendorosamente disparatado e provocativo, que desafia nossa racional visão clássica de cinema. Pretendendo ser uma revelação das relações entre o racional e o irracional, Apocalypse Now assume a estética do irracional, sua linguagem é narrada sob o ponto de vista da barbárie: há sedução guerreira, deleitar-se com a morte (vista com distanciamento emocional, como evento estético), na seqüência dos helicópteros. Talvez somente um outro filme daqueles anos pudesse equiparar-se ao filme de Coppola em sua magistral magia de imagens: Cinzas no paraíso (1978), de Terrence Malick.
Ao rever o filme, deixei-me mergulhar em sua escuridão. Nestes vinte anos entre a primeira (frustrada) visão e esta segunda (deslumbrada) fruição li duas vezes a obra-prima de Conrad. Tirante o fato de que Coppola se afastou muito do original literário, pode-se dizer que se trata de posturas estéticas antagônicas. A psicologia detalhista de Conrad é substituída em Coppola por um barroquismo tresloucado, preso num fio em que por pouco não se despenha na ausência de sentido (que era a crítica de seus detratores -ainda os haverá, quem sabe-antigamente: o monstrengo formalista de Coppola, dizíamos). Todo o lado sombrio, edulcorado por algumas luzes (todavia) perversas, do filme vai dar na breve e marcante aparição de Marlon Brando, careca e gordo, no final; inicialmente ocultado por sombras, sua face aparece primeiramente sob o fundo negro, assustadora, influenciando a personagem de Martin Sheen em sua demência diabólica caracterizada por um visual arrebatado à medida que o desfecho (Sheen vai golpear Brando mortalmente) se aproxima. Aquela voz sussurrada por Brando de maneira muito particular ("O horror! O horror!") é o ponto com que a escuridão se realiza na narrativa; com este som estranho e macabro o filme conclui-se. Som, música; ficam igualmente ecoando nos ouvidos os acordes compostos para a faixa sonora por Coppola e seu pai, Carmine Coppola.
Algumas seqüências do barco do coronel Willard cruzando a selva vietnamita podem lembrar, por sua atmosfera, a travessia amazônica da personagem de Klaus Kinski em Aguirre, a cólera dos deuses (1972), do alemão Werner Herzog. Há uma parte do sentimento do espectador que é o mesmo num e noutro filme: angústia da espera, o barco a singrar. Mas há diferenças: a realização repuxadamente visual de Coppola joga-nos no centro do turbilhão plástico que é o filme; a plasticidade de Herzog é de outro naipe, joga com elementos diversos como um certo silêncio e uma loucura tipicamente germânicas, tudo em Herzog é mais rigoroso e controlado, contrapondo-se à ausência de medidas de Coppola.
Se Coppola difere de Herzog e de Conrad, europeus cerebrais demais para um americano de origem italiana, seu filme não deixa de, como nos sombrios trechos do alemão e do polonês, "conduzir ao coração de umas trevas imensas."