Crítica sobre o filme "Boas-Vidas, Os":

Eron Duarte Fagundes
Boas-Vidas, Os Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 05/10/2003

Os boas vidas (I vitelloni; 1953) foi o terceiro longa-metragem do italiano Federico Fellini e o primeiro a receber reconhecimento internacional. Se muitos anos depois ele faria Amarcord (1973) para recordar sua infância sob as vestes do fascismo italiano, em Os boas vidas Fellini busca as memórias de sua adolescência, as madrugadas, as pequenas e cortantes mesquinharias de um grupo de vadios de interior. Um naturalista diria que o cenário de inspiração é o mesmo: a Rimini em que nasceu o cineasta. Mas não é nada disto: os cenários nebulosos e barrocos de Amarcord e a paisagem doce e descolorida de Os boas vidas são imagens cinematográficas, invenção da cabeça de Fellini.

A estruturação do roteiro de Os boas vidas é simples e singela; tem o clima natural dum caderno de notas, do diário dum rapaz de interior que observa as banalidades que o rodeiam. Toda aquela sensação de realismo, de espontaneidade iniciada por Toni (1934), de Jean Renoir, e depois perseguida pela escola italiana de cinema é exercitada por Fellini neste seu filme. O roteiro é um caderno de notas e o ritmo narrativo se dispersa e torna leve; ainda que este caderno de notas inclua movimentos mais organizados dramaticamente (a tumultuada relação conjugal entre o sedutor Fausto e a ingênua Sandra, tão ao gosto do sentimental Fellini dos primeiros anos), o tratamento de Fellini à imagem, o olhar da câmara, permanece despojado, crítico, quase documental. Mas há também, por trás desse olhar que aparece mais evidentemente, um outro olhar: o olhar dos sonhos, expresso principalmente na seqüência do carnaval e na filmagem da madrugada em que, enquanto o sedutor da turma vai para o quarto com mais uma mulher, o intelectual se embeiça pela lábia dum ator e assusta-se quando descobre neste ator desejos homossexuais.

De um lado um registro semidocumental das vivências de cinco amigos numa cidade de interior. De outro um hino de amor à vida mergulhado nas madrugadas insones e costurado pela história sentimental de Fausto e Sandra que, à boa maneira das antigas fotonovelas e depois de muitas trovoadas, abre-se para o sol e termina bem. O fechamento da história de Fausto e Sandra, caminhando felizes com o nenê nos braços, antecede o fechamento do filme, que é a partida de Moraldo (o olhar de Fellini dentro da narrativa é a personagem de Moraldo) para a cidade grande.

Observe-se ainda que o gosto de Fellini pela simbologia cristã (pense-se no Cristo dependurado de um helicóptero na abertura de A doce vida, 1960, ou nas procissões encenadas em A estrada, 1954, e As noites de Cabiria, 1957) surge em Os boas vidas numa estátua roubada a um lojista por dois dos “vitelloni”.

Um retrato de província. Uma crônica de costumes. Uma linguagem desabusada em seu tom mas formalmente muito cosida, com o arranjo de seqüências que apresentam uma ligação entre si mais tradicional que o comum do neo-realismo. Enfim, um ponto de parada obrigatório quando nos debruçamos sobre a obra cinematográfica de Federico Fellini.