Crítica sobre o filme "Comilança, A":

Eron Duarte Fagundes
Comilança, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/06/2003

Quando, no fim de 1979, A comilança (La grande bouffe; 1973), do italiano Marco Ferreri, chegou à tela do Cinema Um, Sala Vogue, em Porto Alegre, eu era um neófito em cinema e a simbologia escatológica daquelas estranhas e estáticas imagens não me interessaram muito. Como tantos outros filmes daqueles anos, retidos pela voracidade da ditadura militar brasileira, o de Ferreri teve defensores radicais e detratores radicais.

Passados vinte e quatro anos, me penitencio da visão defeituosa, embora não negue a A comilança um distanciamento estilístico que elimina, ainda hoje, quase toda a emoção que poderia advir de seus signos. As imagens obedecem a construções decadentes e paradas, o que conduz a narrativa a um retrato metafórico da empanturrada burguesia européia, que consome e se consome até a morte: a história dos quatro amigos que devoram alimentos interminavelmente até explodirem com o organismo simboliza o comportamento exagerado da burguesia.

Revi A comilança no cinema Guion de Porto Alegre e redescobri um filme que não amei no passado. Os quatro intérpretes centrais, que atendem por seus próprios primeiros nomes na história narrada, estavam no auge de sua capacidade: Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, Michel Piccoli e Philipe Noiret são tão criativos quanto a inspirada direção de Ferreri, que imprime um tom documental a suas imagens delirantes. A gordinha Andréa Ferreol, que contracena com Mastroianni uma seqüência de violenta impotência sexual, é o contraponto perfeito para o universo dos peidos, merdas e exotismos alimentares que atravessam o filme. Rafael Azcona, que co-assina o roteiro, era na época colaborador do cineasta espanhol Carlos Saura, e nota-se, em linhas gerais, a transparência alegórica que caracterizava seus argumentos com Saura: claro, Ferreri é menos elegante e mais cru que Saura.

Gastronomia e sexo são tratados com esquisitice por Ferreri, um pessimista nato como se veria em seus filmes posteriormente exibidos por aqui, como Dillinger está morto (1968), interpretado quase que exclusivamente por Piccoli, e Crônica do amor louco (1982), talvez sua obra-prima.

A comilança, jogado no ramerrão da programação de hoje, é um corpo bem estranho. Um tipo de provocação cinematográfica mais amiudada nos anos 70, mas que agora talvez só encontre semelhantes em alguns filmes dinamarqueses do Dogma 95.