Crítica sobre o filme "Declínio do Império Americano. O":

Eron Duarte Fagundes
Declínio do Império Americano. O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 25/08/2004

Em O declínio do império americano (Le déclin de l’empire américan; 1986) o cineasta canadense Denys Arcand executa um modelo de cinema em que as ações dramáticas se passam inteiramente nos lábios das personagens; este tipo de cinema só pode ter vida quando a palavra brilha e o diálogo pode assim tornar-se interessante como centro da linguagem cinematográfica – numa palavra, cinema literário. O francês Eric Rohmer, o suíço Alain Tanner e o norte-americano Woody Allen são alguns realizadores que atingiram um nível elevado ao fazer um cinema de palavras em que o despojamento da imagem casa com o verbo solto na boca dos atores. Arcand não chega a ter o estofo dos diretores referidos: às vezes gorduroso demais, outras satisfazendo-se apressadamente com o transitório e o circunstancial, aqui e ali dispersivo em suas intenções. Mas, ainda assim, este seu filme mais conceituado, embora inferior a Jesus de Montreal (1989), permanece como uma obra que marcou as discussões cinematográficas dos anos 80.

À maneira dos franceses Alain Resnais em Providence (1976) e Bertrand Tavernier em Um sonho de domingo (1984), Arcand isola no campo um grupo de intelectuais da classe média canadense para se revelarem por diálogos em que inquietações transcendentes se misturam com puras trivialidades do cotidiano de qualquer um; é claro que Arcand parece mais postiço que Resnais ou Tavernier, suas incursões pela autoparódia intelectual em certos instantes não acham o tom adequado, mas logo o realizador dá a volta por cima e nos envolve com achados de espontaneidade de filmar. As relações entre homens e mulheres inunda as questões do filme, e os diálogos transbordam de referências sexuais; observe-se que esta realização foi o primeiro filme do mercado internacional que fez uma referência, ainda que breve e distante, ao então nascente problema da AIDS (lembremos que naqueles anos se supunha que esta doença estava atrelada ao homossexualismo do paciente).

Arcand estrutura seu filme em duas partes. Na primeira parte ele alterna imagens do encontro dos homens (no campo) com seqüências do encontro das mulheres (na cidade); na segunda parte as mulheres chegam ao campo, e homens e mulheres misturam seus diálogos. Sobre o universo ficcional retratado paira a tese exposta desde a aula que abre o filme: seria nossa época uma época de decadência (as facilidades dos costumes, a falência das instituições, epidemias, guerras) ou uma época de Renascença (as tecnologias avançadas, as comodidades)?

Em duas cenas distanciadas no corpo da projeção Arcand faz suas personagens citarem o filósofo Witttgenstein e o pintor Caravaggio. Curiosamente estes dois artistas (um da palavra, outro das tintas, pois o cinema, tal como Arcand o concebe, não é assim uma união de palavras e tintas?) foram retratados em filmes muito pessoais pelo inglês Derek Jarman, cineasta homossexual que morreu de AIDS há cerca de dez anos.

Um dos movimentos mais intensos do filme é aquele, depois da breve aula que serve de intróito à narrativa, travelling-para-a-frente que percorre o largo e extenso corredor duma escola enquanto os créditos desfilam na tela; ao cabo do movimento de câmara e dos créditos, uma mulher está entrevistando outra diante do gravador.

Visto pela primeira vez no Brasil em novembro de 1986 no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, a que compareci, na espaçosa Sala Glauber Rocha, no Hotel Nacional, e revisto em 1987 em Porto Alegre, o filme de Arcand, relançado nos cinemas em 2003, conserva ainda hoje os mesmos problemas e as mesmas virtudes que pude enxergar nele há dezessete anos: é um belo apanhado da superficialidade intelectual daquela época como de hoje.

P.S.: O texto acima foi escrito em junho de 2003, quando o filme de Arcand foi reprisado em Porto Alegre. Meses depois, a visão de As invasões bárbaras (2003), marco do cinema deste início de milênio, modificaria bastante meus conceitos do cinema de Arcand. Para quem se interessa, meu texto sobre As invasões pode ser encontrado na cinemania de 2003.