Crítica sobre o filme "Depois Daquele Beijo":

Eron Duarte Fagundes
Depois Daquele Beijo Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 08/12/2004

Depois daquele beijo (Blow up; 1967), do italiano Michelangelo Antonioni, é na verdade um filme que trata sutilmente do próprio cinema. Não tão ostensivamente quanto Oito e meio (1963), do igualmente italiano Federico Fellini, pois as metáforas de Antonioni são mais secretas e menos exuberantes como espetáculo visual. Como em Janela indiscreta (1954), do inglês Alfred Hitchcock, é um fotógrafo com sua mania de olhar as coisas pela lente de sua máquina quem vai simbolizar a figura do cineasta, um homem que parece estar sempre vendo o mundo tendo diante de seus olhos a câmara de filmar; se o fotógrafo de Hitch está paralisado numa cadeira de rodas, o de Antonioni se mexe o tempo todo por cenários cuja adequada abstração e interioridade logo se instala; em Hitch e em Antonioni a visão (num, o binóculo; noutro, a fotografia revelada) aponta para a existência de um crime; se Hitch, com sutileza, privilegia a ação da personagem, Antonioni coloca seus seres naquela libertinagem formal cheia de desvios de conversa e tempos mortos que sempre inquietam seu observador e impacientam a maioria do público.

Aparentemente Depois daquele beijo é um filme que trata dum fútil fotógrafo de modas que um belo dia, fotografando ao acaso num parque, se detém numa mulher e seu envelhecido acompanhante, ambos com gestos estranhos um para o outro. Quando a criatura revela as fotografias e descobre detalhes que a levam a suspeitar de um crime (uma mão segura o revólver numa vegetação rasteira, um corpo estendido na grama –coisas que ao fotografar o homem não viu), aparentemente Antonioni está voltando-se para o gênero policial, cuja forma ele namora desde sua obra inicial, Crimes d’alma (1950); mas os aspectos policiais duma trama não se aninham pacificamente no estilo metafísico de filmar de Antonioni. Na segunda leitura do filme é que o espectador desvenda algo que Antonioni nos diz com paixão: trata-se duma reflexão sobre o cinema como método de olhar. Observemos os diversos planos que mostram as fotografias reveladas no estúdio. Pouco a pouco os detalhes (um revólver, um corpo –que antes não vimos, e não vimos não por cegueira mas porque a própria imagem cinematográfica não continha estas informações) nos abrem uma história que não chegará a completar-se inteiramente; é preciso atentar para os detalhes para ver bem em cinema, e especialmente ver bem nos filmes de Antonioni. A exasperação de filmar do cineasta é tão grave e rigorosa quanto em seus trabalhos da trilogia da incomunicabilidade (A aventura, 1959; A noite, 1960; O eclipse, 1961), embora se afigure visualmente mais aberta e descontraída; e esta exasperação serve na medida para o processo de revelação das inquietações de visão da personagem: como suas fotografias sumiram, teria existido aquele crime fora do trabalho da máquina? No fim, quando um grupo de jovens pintados e barulhentos simula um jogo de tênis (há a quadra, mas não há bola), se evidencia: a realidade fora do cinema (ou da fotografia) pode não existir, tudo é um jogo de faz de conta.

Como em A aventura e em Identificação de uma mulher (1982), há uma mulher que surge brevemente em cena para deflagrar o processo e depois desaparece. A personagem de Vanessa Redgrave, fotografada junto com um velho no parque, vai perseguir o fotógrafo em busca das fotografias, mas logo não a vemos mais. É uma aguçada presença-ausência em nossas retinas e nas formulações do protagonista.

Escreveu Antonioni em seu livro O fio perigoso das coisas (1983): “Alguns anos atrás eu me encontrava em Roma por acaso e não sabia o que fazer. Quando não sei o que fazer começo a olhar. Existe uma técnica para isso, ou melhor, existem várias. Eu tenho a minha. Que consiste em remontar de uma série de imagens a um estado de coisas. A experiência me ensina que quando uma intuição é bonita ela também é certa. Não sei por quê. Wittgenstein sabia.” Nas seqüências em que o fotógrafo, examinando o resultado de seu trabalho (as fotografias tiradas no parque agora reveladas no estúdio), enxerga o germe de um assassinato, aprendemos a olhar com Antonioni.