Crítica sobre o filme "Dogville":

Eron Duarte Fagundes
Dogville Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 09/09/2004

À maneira de alguns filmes do alemão Rainer Werner Fassbinder (As lágrimas amargas de Petra von Kant, 1971; Effie Briest, 1974), Dogville (2003), realizado pelo dinamarquês Lars von Trier, expõe uma ossatura teatral para provocar a linguagem cinematográfica. Na verdade, a exposição do cineasta nórdico está ainda mais exposta do que em Fassbinder: abdicando do realismo de encenação que marcou sua presença no Dogma 95, Von Trier parte em busca do artificialismo narrativo experimental. Em Dogville é como se a câmara documentasse uma marcação exasperantemente teatral incluindo algumas formas literárias de dizer as frases; o cenário é um palco em que as divisões de cena são assinaladas por giz, definem-se as casas e as ruas de maneira ilusória, um adrede faz-de-conta, os atores deslizam como se estivessem no espaço teatral, há um narrador-over que parece extraído das páginas de um livro. O choque inicial para o espectador cinematográfico perturba; mas o realizador usa de suas três horas de projeção para, com paciência, fazer a mente do assistente adaptar-se a um jogo visual tão provocativo quanto original. O resultado assombra.

Dizem tratar-se do pontapé inicial de uma trilogia do diretor sobre os Estados Unidos da América. Sua inventada Dogville metaforiza uma América torpe, caricatural, amorfa, corrupta. A figura da mulher perseguida por gângsters que se esconde numa comunidade onde, para obter proteção, tem de prestar serviços domésticos e finalmente até sexuais, impressiona pelo grau de perversidade que Von trier geralmente coloca em suas tensas e diferentes personagens; Nicole Kidman, que viveu uma faxineira pouco convincente em Revelações (2003), de Robert Benton, é inteiramente devoradora nas mãos de Von Trier como a doméstica da comunidade.

A seqüência final parece fornecer uma chave para a nova obra-prima de Von Trier. Dogville talvez seja a interpretação européia para os Estados Unidos depois de 11 de setembro de 2001; segundo o cineasta dinamarquês, o que os terroristas árabes teriam solapado em 11 de setembro seria a falta de forma da América, uma América tão prepotente quanto imbecil, vejamos as criaturas que se movem no parco ambiente de Dogville; em suas cenas conclusivas, os tiros de Dogville reconstituem, em microcosmo, o evento do World Trade Center. A polêmica é: estaria um intelectual europeu culto como Von Trier justificando o 11 de setembro, decretando o início da barbárie?

Sim ou não, isto não altera a extraordinária profundidade de Dogville, onde Von Trier se expõe tanto a um desafio formal quanto a um desafio de pensamentos históricos contemporâneos.