Crítica sobre o filme "Estrada da Vida, A":

Eron Duarte Fagundes
Estrada da Vida, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/06/2003

O cineasta italiano Federico Fellini está novamente em cartaz, para delícia de seus admiradores. Em 2002 chegou ao Brasil um documentário inédito de Fellini, Os palhaços (1970), que traduzia as relações entre o cinema místico do realizador e uma arte tão popular quanto o circo. Já está disponível em dvd o mais melancólico e arrasador trabalho do diretor, A doce vida (1960). A estrada da vida (La strada; 1954) reafirma as afinidades de Fellini com a linguagem do circo, com os palhaços, com os triviais artistas ambulantes (aliás, o sueco Ingmar Bergman, antes de se converter inteiramente ao intelectualismo escandinavo, afeiçoava-se a estes seres, como se evidencia num filme dessa época, Noites de circo, 1953): a personagem de Giulietta Masina, a patética Gelsomina, é a autêntica palhaça felliniana; pinta-se, dá pulos, tem tiradas ingênuas, diverte-se (e diverte) bobamente. Fellini trata esse universo menor com sua grandeza habitual, ainda na fase mais realista de sua obra.

Giulietta Masina, a intérprete exata e sensível de A estrada da vida, em que vive uma anedótica figura de garota de interior vendida na cena inicial, diante do mar, pela mãe a um rude apresentador mambembe de variedades (um característico Anthony Quinn), foi a prostituta Cabiria de As noites de Cabiria (1957), a burguesa assombrada com a infidelidade do marido em Julieta dos espíritos (1965) e a bailarina popular em Ginger e Fred (1985), todos seres primitivos conduzidos com mão de maestro por Fellini.

Se o mar assiste à desolada cena em que a personagem de Masina é negociada na abertura da fita, é o mesmo mar, aparentemente mais bravio ou sombrio ou furioso, que vai ver o desespero de culpa da criatura de Quinn, arrastando-se na areia depois de abandonar sua parceira e descobrir tempos depois que ela morreu sem eira nem beira: a rudeza da personagem se fragiliza.

As preocupações religiosas de Fellini, como italiano típico, já estão em A estrada da vida . O Jesus, que em A doce vida apareceria dependurado de um helicóptero, surge aqui no seio duma procissão. Procissão que retornaria em As noites da Cabiria. O encanto do par de A estrada com as freiras dum convento é outro instante de ironia cristã de Fellini. Nada que atinja o sarcasmo do desfile de moda eclesiástica de Roma de Fellini (1972).

Criador inigualável de tipos humanos, Fellini é desabusadamente superficial na comparação que se faz com as personagens do sueco Ingmar Bergman. Na literatura, poderíamos evocar as diferenças entre o francês Honoré de Balzac (o homem-tipo) e o russo Fiódor Dostoievski (o homem-abissal). Gelsomina pulsa duma humanidade a que nem sempre o cinema soube dar acesso.