Crítica sobre o filme "Francisco, Arauto de Deus":

Eron Duarte Fagundes
Francisco, Arauto de Deus Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 09/03/2005

Francisco, o arauto de Deus (Francesco, giullare di Dio; 1950), do italiano Roberto Rossellini, gerou O evangelho segundo São Mateus (1964), do também italiano Pier Paolo Pasolini, mas sua visão cinematográfica da vida de São Francisco de Assis difere bastante daquela apresentada por outro italiano, Franco Zeffirelli, em Irmão Sol, irmã Lua (1973). O filme de Rossellini, como o de Pasolini, exacerba na utilização de atores amadores que recitam desdramaticamente os diálogos, expõe-se à aridez dos cenários e da fotografia, articula um rigoroso controle do plano cinematográfico e da movimentação cênica; em suma, um despojamento extremado. Com Zeffirelli as coisas são diferentes: há opulência de cores e uma preocupação com o espetáculo que o realismo documental de Rossellini despreza (algo que ele passou a seu conturbado discípulo Pasolini).

Rossellini sempre foi um homem de cinema profundamente cristão; a figura do padre em Roma, cidade aberta (1945) e em Era noite em Roma (1960) dá o tom da profundidade de sua fé. Um ano depois de sua cinebiografia de São Francisco o cineasta rodava Europa 51 (1952), um dos mais amargos retratos da santidade duma mulher perdida num mundo absurdo e de vícios; sua contemplação fílmica duma figura sacro-histórica em Joana d’Arc de Rossellini (1954) deve ser evocada com justiça. Neste contexto, Francisco, o arauto de Deus é outra bela amostra de seu cinema rigorosamente estético e religioso: apesar de estar falando de um mito do cristianismo, é como se Rossellini estivesse rodando um semidocumentário de pescadores, assim como o fizera em Stromboli, terra de Deus (1949), o filme que marcou sua união nada santa com a atriz sueca Ingrid Bergman.

A harmonia de sentimentos e vozes que perpassam Francisco, o arauto de Deus é encantatória. Mesmo tratando-se duma obra menos citada numa filmografia tão notável, o filme revela-se algo alentador para ser descoberto pelo cinéfilo que não se contenta com a feijoada sem tempero que é o cinema de sempre: vamos a esta peculiar massa italiana servida por Rossellini.