Crítica sobre o filme "Grito, O":

Eron Duarte Fagundes
Grito, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 05/01/2005

Geralmente voltado para descrever os processos de desintegração do homem burguês, que ele conhece bem por ser um deles, o cineasta italiano Michelangelo Antonioni coloca em O grito (Il grido; 1957) o universo operário: já não são pessoas dilaceradas exclusivamente pela crise existencial, mas homens e mulheres que têm de lutar por sua sobrevivência e chegam às vezes a passar fome, elemento novo e inusitado num filme de Antonioni. O protagonista é um operário que no início do filme é abandonado por sua mulher, que o troca por um parceiro mais jovem (cuja referência não aparece na imagem, tão-somente nos diálogos do casal); perdido e perplexo, ele sai a viajar com sua filha pequena; sua frustrada tentativa de aproximação a uma ex-namorada, seu relacionamento com uma dona de um posto de combustível, seu caso com mais outra mulher logo adiante, sua decisão de por ônibus fazer sua filha retornar à companhia da mãe só vão acentuar sua perdição e sua perplexidade, que, embora as características proletárias da personagem dêem um toque diferencial, não se distanciam dos processos vividos por outras criaturas de Antonioni. Aldo, o operário de O grito, é tão dilacerado quanto a mulher que desaparece em A aventura (1959) ou o desesperado romancista que se afasta e se aproxima de sua esposa em A noite (1960); isto é, Aldo é uma gota de seu criador, Aldo é tão inquieto quanto Antonioni.

A beleza plástica da realização de Antonioni nasce muito do casamento que surge entre a precisa e pictórica angulação do quadro, a extraordinária utilização e marcação dos cenários (quase todos áridas e esfumaçadas ambientações do interior da Itália) e uma forma pessoal e introspectiva de dirigir os atores, modulando seus gestos, indicando seus caminhares, abrindo sutilezas em suas vozes. As esplendorosas imagens criadas pela câmara de Antonioni são aqui e ali sublinhadas por acordes pianísticos, provocando um refinamento estético que contrasta com a rudeza do meio retratado.

Um dos dados surpreendentes de O grito é a intromissão do componente social. Certo: o protagonista é um operário, mas poucas vezes o vemos em seus ofícios (a não ser quando é empregado de sua amante num posto de gasolina) e sua consciência de classe se esvai em suas fumaças existenciais. O componente social surge mais fortemente nos planos finais: Aldo voltou ao cenário do início, vê de longe sua filha, espia pela janela sua ex-mulher cuidando de um bebê e dispara em sua arrancada para a grande crise; então Antonioni alterna os planos dos passos de Aldo com os planos de movimentos dos trabalhadores do campo que se rebelam contra a desapropriação de suas terras para a instalação de um campo de pouso militar. Estes planos dos trabalhadores têm uma inquietação política que só toparia equivalente na filmografia de Antonioni nas agitações universitárias norte-americanas de Zabriskie Point (1969).

Os planos derradeiros de O grito são um novo triunfo da provocativa ambigüidade de filmar do cineasta. Aldo sobe por uma longa escada e, chegando ao topo do prédio, ouvindo sua ex-mulher que o perseguira naquela arrancada chamando-o lá debaixo, tonteia, cai e morre, diante do grito (daí um dos símbolos do título do filme) da mulher. A câmara de Antonioni acompanha com adequação estilística a instabilidade da cabeça da personagem nas alturas, uma espécie de vertigem: a instabilidade é da câmara e também da personagem. O espectador não sabe se Aldo se suicidou, jogando-se do alto, ou sentiu-se mal e tombou logo depois de ouvir a mulher chamando por ele e encará-la, nem sabe se a idéia de suicídio o dominava em toda a correria que ele empreende no final da película; assim como nunca poderá saber o que aconteceu com a desaparecida de A aventura.

Diante da visão de um filme de Antonioni, qualquer filme que ele tenha realizado desde Crimes d’alma (1950) até Além das nuvens (1995), eu, um devoto de seu cinema, assistente contrito de sua genialidade, sou perpassado por um sentimento envergonhadamente reacionário: valerá a pena elogiar algum filme de hoje, qualquer filme?