Poucas vezes o cinema logrou atingir a interioridade humana no nível de Gritos e sussurros (1972), filme do sueco Ingmar Bergman que o espectador sempre revê com renovada paixão. Tudo funciona com perfeição na narrativa de Bergman para dar ao assistente algumas imagens da alma; o grupo de atores característicos do cineasta (sua mulher da época, Liv Ullmann, e duas ex-, Harriet Anderson, a ciumenta de Noites de circo, 1953, e Ingrid Thulin, o pólo malvado e carnal de O silêncio, 1962), o fotógrafo habitual do realizador (Sven Nykvist), os temas inevitáveis (o casamento em crise, a dor, a morte, os analfabetos emocionais), tudo contribui para que o conjunto chegue a um paroxismo estético que nos enleva. Quem leu o brilhante texto-roteiro que Bergman escreveu, sente sua agudeza psicológica desde a primeira página; na tela, diante de sua câmara, Bergman dispõe os elementos visuais com rara eficácia; num jogo dialético, a cor vermelha das paredes, das cortinas e dos estofados dos móveis vão propor sentimentos plásticos em que o contraste com as vestes brancas e depois pretas das personagens estabelecem quadros de grande força espiritual.
O início do filme é feito de silêncios e pequenos ruídos, como o tique-taque do relógio de parede e o vento lá fora. A imagem inicial é exterior à casa: uma fotografia suave e luminosa da natureza. Estes exteriores tranqüilos, semelhando o paraíso, diferem dos interiores pesados, sombrios, infernais (a parede vermelha, metáfora da alma, arde como o inferno). A imagem final, sobre a qual uma voz-off (Anna, a empregada, apanhou o caderno para o ler) diz o diário de Agnes, já morta, depois de desesperadora agonia, vai mostrar outra visão do paraíso: a cena outonal, feliz, as três irmãs estão num balanço, num jardim, num dia de sol filtrado pela vegetação, e Anna as embalança, uma pós-vida, um pós-inferno, o clima de outono com sua coloração amarelada remete a um filme posterior de Bergman, Sonata de outono (1978). Entre dois paraísos Bergman filma o inferno (de dor e caretas) que está dentro de nós.
O cineasta tem o dom de provocar um jogo contrastante de personagens, como ocorria em Persona (1968). A frágil Maria, a rude Karin, a sofredora Agnes e a afeiçoada empregada Anna compõem o entrevero de dialética de personagens em que se compraz o narrador do filme; e Bergman vale-se de sua intimidade com os atores de seu filme para conferir profundidade àquilo que poderia ser um estereótipo psicológico.
Talvez Gritos e sussurros seja o mais perfeito monumento estético erigido por Ingmar Bergman para mostrar como funcionam, à sua ótica, as queimações da alma. Esta queimações são especialmente reveladas em alguns primeiros planos do rosto amargo e perverso de Karin/Ingrid Thulin, o qual aparece envolto abstratamente num fundo negro.