O norte-americano Edgar Allan Poe viveu pouco (quarenta anos), mas sua literatura chegou à eternidade. Contista perfeito, poeta de alto vôo, Poe é influência obrigatória em todas as épocas e literaturas que lhe sucederam. Sob a aparência do horror gótico e do suspense, o que Poe cria em seus contos é uma metafísica muito particular: a ficção de um filósofo. Talvez por isso O demônio da perversidade (1845) seja o cume de sua arte em prosa: nesta breve dissertação transfigurada em conto de idéias Poe coloca todo o poder de seu raciocínio e criador de atmosferas mentais. Pobre literatura de horror que no século XX gerou horrores de lixo como Stephen King: saudades de Poe!
A associação entre a Cinemagia e a Pandemonium Editora permitiu a existência da versão em DVD do filme em episódios Histórias extraordinárias (1967), de Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini, e da edição em tiragem limitada dos três contos que serviram de base para que os cineastas executassem sua interpretação do universo de sombras de Poe. Os três contos não estão entre os mais belos do grande escritor norte-americano; sua investigação do mundo da nobreza européia em Metzengerstein (1832), seu olhar clínico para as lutas internas do ser em William Wilson (1840) e seu ajuste de contas com a crítica de seu tempo em Nunca aposte sua cabeça com o diabo (1841) têm a linguagem da precisão em que Poe é mestre, mas falta ali a transcendência de seus momentos mais psicologicamente arrepiantes. Ademais, a tradução atual parece apressada, o que gera um português aqui e ali desleixado e sem a força do original de Poe, a que correspondia uma antiga versão de Oscar Mendes para a José Aguilar Editora (1975). De qualquer maneira, o poder das imagens literárias de Poe é tão forte que pequenos problemas de traslado não desdouram inteiramente os textos.
As versões cinematográficas dos contos de Poe em Histórias extraordinárias são curiosas e desiguais. O filme é hoje mais uma peça histórica do que uma realização artisticamente importante, embora a excelência de alguns nomes envolvidos.
Em Metzengerstein o francês Roger Vadim passeia numa reconstituição de época por seu habitual cinema de superficialidade e vazio. Tudo é muito bonitinho, muito charmoso. Jane Fonda, então mulher de Vadim, vaga com seu talento pelos cenários do tempo. O ritmo cinematográfico, lento e estudado, obedecia a certos padrões da época e hoje não logra impressionar mesmo o espectador mais disposto. Contemplativo e sem seiva, o filme serve para que Vadim transforme o universo austero de Poe (lembremos que o conto cita como epígrafe uma frase em latim do criador do protestantismo, o alemão Martinho Lutero) num desfilar de orgias: Jane passa o tempo todo seminua, assim como o erotismo superficial é a base de mais esta aventura cinematográfica de Vadim. “O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Por que então datar esta estória que vou contar?” De fato: a atemporalidade é a nota de todos os episódios de Histórias extraordinárias.
Diferentemente se passa com o francês Louis Malle e seu William Wilson. Se Vadim é fácil demais em sua transfiguração de Poe em cinema, Malle exerce seu conhecido rigor. Valendo-se das qualidades de estrelas e intérpretes de Alain Delon e Brigitte Bardot, dois ícones do cinema francês e europeu nos anos 60, Malle tem um momento básico de seu estilo de filmar no jogo de cartas entre as personagens dos dois atores. A tensão e as reviravoltas da seqüência estimulam o gosto cinematográfico do espectador. Uma das cenas iniciais no colégio parecem antecipar o despojamento interior de Adeus, meninos (1987), uma das obras-primas do diretor. Mesmo assim, não se pode dizer que William Wilson se coloca entre as melhores coisas saídas da mão de Malle. “e, na minha morte, vê por estas imagens, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo!” Assim, Malle reflexiona indiretamente sobre o suicídio e seus mistérios, algo que o absorvera em Trinta anos esta noite (1963).
Se Poe ajusta contas com seus críticos literários no conto Nunca aposte sua cabeça com o diabo, a verdade é que o cineasta italiano Federico Fellini, em Toby Dammit, o episódio cinematográfico do conto extraído, põe para fora sua obsessão por discutir a encenação fílmica, obsessão que ele engendrara a partir de Oito e meio (1963). Toby Dammit está incrustado numa encruzilhada perigosa do cinema de Fellini, aquela representada por Julieta dos espíritos (1965) e Satyricon (1969), em que o derrame de símbolos grotescos na tela parecia indicar uma incômoda exacerbação formal –o vazio formalista avaliado por seus críticos. Diziam que, como o cineasta Guido Anselmi de Oito e meio, Fellini nada mais tinha para dizer: ficava a repetir interminavelmente suas escleroses visuais. De fato: Toby Dammit é, dos três episódios, o que mais se desvia do texto de Poe. Em Fellini a personagem é um ator inglês que chega a Roma para um filme; o bombardeio dos repórteres, fazendo complicadíssimos questionamentos estéticos a um simples ator, assemelha-se demais à cena com a personagem de Anita Ekberg em A doce vida (1960), uma estrela sueca que desembarca em Roma para um filme. Até que o divertimento grotesco de Fellini funciona: sua câmara inquieta e pessoal, seu universo de seres estranhos são um alento para os fellinianos empedernidos. Porém ainda não é suficiente para elevar Histórias extraordinárias a um nível mais alto do que uma curiosidade histórica.
Se Vadim simboliza a vacuidade, Malle o rigor formal e Fellini a exuberância das imagens, voltemos a Poe para topar o horror e a fatalidade. E a solidão da alma, como diz o verso inicial do poema “Espíritos dos mortos”. Da memória do cinemaníaco que assina estas linhas surge a convicção de que nenhum filme terá captado tão bem o espírito malévolo e gótico das narrativas de Poe quanto o italiano Almas perdidas (1976), de Dino Risi, curiosamente uma história original de Risi que nada tem que ver com texto algum de Poe, e contava com Vittorio Gassman e Catherine Deneuve no auge de sua potência interpretativa.