Em Meu tio da América (1980), um dos grandes filmes do francês Alain Resnais recentemente revisto, o realizador insere na montagem excertos de filmes antiquíssimos para caracterizar com o comportamento de alguns atores da velha guarda certos tiques físicos que inspiravam as personagens de sua narrativa. Num determinado momento de As invasões bárbaras (Les invasions barbares; 2003), de Denys Arcand, a personagem de Remy, hospitalizado com doença terminal, evoca suas lembranças de antigas estrelas de cinema e Arcand repete o procedimento de Resnais: equiparar os gestos das estrelas nos velhos filmes às ações das personagens que ele está criando, incluindo com habilidade na montagem pedaços de películas de antanho. É bom começar assim a falar da exuberante realização de Arcand, associando-a à obra-prima inaugural da década de 80 do século passado, porque As invasões bárbaras repõe em cartaz um tipo de grandeza cinematográfica de que a superficialidade contemporânea se tem afastado.
A irreverência cinematográfica e filosófica do realizador canadense Denys Arcand é bem conhecida do público brasileiro em três filmes que discutiam a falência das relações humanas no fim do século XX: O declínio do império americano (1986) dava uma perspectiva histórica ao vazio intelectual dos anos 80, assim como Jesus de Montreal (1989) se acercava da impossibilidade religiosa no mundo materialista de hoje e Amor e restos humanos (1993) investia sobre a crise dos sentimentos. Conquanto se revelasse um arguto analista da sociedade de seu tempo, havia sempre alguma coisa nas narrativas do cineasta Arcand que impunha uma barreira, caracterizando sua visão de mundo aqui e ali como superficial e transitória.
Esta barreira despenca em As invasões bárbaras, talvez o melhor trabalho de Arcand e seguramente um marco na história do cinema. Tido como um prolongamento das inquietações de O declínio do império americano, o novo Arcand deposita seu olhar irônico sobre algumas contradições do indivíduo e da sociedade contemporâneos. Dotando suas personagens duma definição emocional raras vezes vista num filme, Arcand acompanha a comovente trajetória de um filho que se entrega denodadamente a oferecer a seu velho pai, no leito final, o melhor conforto para amenizar os sofrimentos no cabo da vida. Aí, na caracterização do pai e do filho, Arcand é maravilhoso em pescar os aspectos contraditórios das condutas humanas. O pai, um socialista hedonista, que amou acima de tudo a si mesmo amando várias mulheres, foi um egoísta tão pouco socializante, contrastando com as intenções de sua geração de mudar o mundo para o benefício do maior número de pessoas. O filho, um capitalista, um criador do mercado austero e impessoal, com seu exterior de jovem protestante, um “jansenista da era do dinheiro”, oferece silenciosamente um amor inusitadamente religioso a seu pai. Perguntado pela enfermeira religiosa se ele, pai, visitava seu pai nos hospitais quando este estava doente, o velho homem alegou distâncias, esquecendo-se (observação impiedosa da enfermeira católica) que seu filho estava ali vindo de mais longe; esta seta jogada na contradição dum indivíduo aprofunda sarcasticamente em cada minuto do filme o fosso surgido entre uma ideologia bem-intencionada e a prática dos sentimentos pelos seres humanos. Cheio de instantes de emoção, As invasões bárbaras está no seu pico quando o pai abraça seu filho desejando-lhe que tenha um filho tão bom quanto ele, filho. Os vídeos da filha viajante do moribundo, mostrados num laptop do filho, ela uma garota plena de amor à vida, revela uma criatura tão hedonista quanto seu pai; mas é emocionante vê-la dizer que o primeiro homem na vida de uma garota é seu próprio pai e afirmar, corroída pela distância, que vai sentir a falta dele por toda a vida.
Se O declínio do império americano fazia uma breve referência ao nascente problema da AIDS, As invasões bárbaras alude passageira mas marcantemente aos atentados terroristas de setembro de 2001: a chegada dos bárbaros à metrópole, truculentamente como não poderia deixar de ser. Mas a referência histórica já não é tão brejeira e superficial como em O declínio. No apogeu de seu estilo de filmar, Arcand atinge pontos que o equiparam ao francês Eric Rohmer na capacidade de dar profundidade ao trivial. E pode-se evocar o suíço Alain Tanner, para lembrar que As invasões bárbaras pode ser tão bom quanto Jonas que terá vinte e cinco anos no ano 2000 (1976) no apanhado apocalíptico de um tempo histórico.