Crítica sobre o filme "Leopardo, O":

Eron Duarte Fagundes
Leopardo, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 28/07/2004

“Pôs-se a olhar um quadro que estava na sua frente: era uma boa cópia de Morte do justo, de Greuze. O velho estava expirando no seu leito, entre montanhas de travesseiros e lençóis limpíssimos, cercado de netos aflitos e netas que levantavam os braços para o teto. As mocinhas eram bonitas, provocantes, a desordem de suas vestes sugeria mais a libertinagem que a dor; compreendia-se logo que eram elas o verdadeiro motivo do quadro.” (Giuseppe Tomasi di Lampedusa, in O leopardo, romance de 1957).

A cena mais significativa do pensamento expresso em O leopardo (Il gattopardo; 1963), o filme de Luchino Visconti, é aquela cena em que o príncipe Salinas, afastando-se do tumulto do baile, passa a contemplar um quadro de Greuze que trata da morte: um velho está morrendo cercado das novas gerações. O príncipe Salinas, preso em sua crise da meia-idade (está com quarenta e cinco anos, mas sente-se muito mais velho), vê ali, naquela tela, o reflexo de sua própria morte; envolvido pelo noivado de seu sobrinho Tancredi (um nobre) com uma burguesa (a bela Angelica), o príncipe parece estar no fim de seu tempo. À sua maneira, Visconti, neste pequeno trecho, reflete sobre o fluir das idades. E sobre o fim de uma classe social, a aristocracia, que já nos anos 60 do século XIX (época em que se ambienta a narrativa) apresentava à sociedade sua decadência.

Luchino Visconti, o realizador de O leopardo, é filho da aristocracia italiana. Tomasi di Lampedusa, o autor do romance de que Visconti extraiu o filme, o é igualmente: trata-se do Duque de Parma. Lampedusa é um desajustador da linguagem: pontuação e liberdades sintáticas vão jogá-lo na estrada aberta por James Joyce. Visconti é um apaixonado do rigor clássico: nascido de Jean Renoir, foi adotar um barroquismo cenográfico e um refinamento de gestos das personagens certamente único na história do cinema; sua pretensão de retratar o fim da aristocracia européia, muito bem caracterizada na(s) longa(s) seqüência(s) do baile (os quarenta minutos finais da realização), o aproxima daquilo que foi Marcel Proust na literatura; não foi acaso que Visconti sonhou durante toda sua vida com adaptar para a tela o romance-rio do escritor francês. Como Proust, Visconti brilha ao unir os detalhes da vida pública aos detalhes da vida privada de suas personagens: o coletivo e o individual, o psicológico e o social entrelaçam-se com perfeição nas cenas do baile de noivado que é o ponto alto de toda a armação ideológica e estética de O leopardo.

Intrepretações no universo barroco do cineasta. Burt Lancaster é muito bem colocado por Visconti no seio rebuscado da linguagem: em cenários cheios de adereços nobres, o americano Lancaster interpreta um italiano melancólico, o que se caracteriza mais fortemente no trecho em que a personagem contempla o quadro da morte. Alguns anos depois, em Violência e paixão (1974), Lancaster voltaria às mãos de Visconti para viver uma criatura não muito longe do príncipe Salinas, um professor que vê desesperado ruir o mundo cultural em que foi criado. Claudia Cardinale e Alain Delon, jovens e exuberantes, igualmente se enleiam nas malhas da linguagem de Visconti; Claudia voltaria no filme seguinte do cineasta, Vagas estrelas da ursa (1965), para mergulhar num caso de incesto entre irmãos. Quer dizer: os atores são brilhantes, minuciosamente dirigidos (nunca se deve esquecer que Visconti é originário do teatro), mas no corpo de um estilo de filmar tão sobressalente as interpretações dissolvem-se e nunca estão em primeiro plano, como no mais característico cinema americano, por exemplo, agora e sempre marcado pela época (passada) do star system.

As sutilezas da fotografia de Giuseppe Rotuno ajuda Visconti a compor esta sempre atual recriação de época das lutas de Giuseppe Garibaldi pela unificação italiana. As mudanças sociais e o fim de uma era, mesmo tratando de algo tão distante quanto os anos 60 do século XIX, têm uma contemporaneidade avassaladora para o espectador do início do terceiro milênio. O que comprova a genialidade de Visconti: acertar no ponto eterno de um evento histórico (quase proto-histórico para o mundo de hoje).

Se a cena da visão do quadro de Greuze é a mais significativa, certamente as do baile são as mais belas e melhor construídas. Poucas vezes no cinema se filmou a dança com tanta volúpia. Lembro as seqüências dançadas de A valsa do imperador (1947), de Billy Wilder, visto há alguns anos na televisão a cabo; talvez Wilder, austríaco de nascimento (terra da música, a Áustria) seja o que tenha chegado mais próximo de Visconti no captar os movimentos dos pares num salão de dança.

Mesmo as cenas de batalha campal, que jogam o visual do filme para um enfrentamento físico, são rodadas com tanta finura estética que fazem permanecer O leopardo nos limites daquelas reflexões filosóficas estabelecidas na biblioteca diante do quadro que mostra uma visão barroca, gritada da morte.