Um velha solitária apanha um bebê (que deixaram a chorar) entre os legumes de sua horta. Este bebê cresce. Ainda em sua infância, a velha que o cria morre; pelas ruas encharcadas de Milão, ele acompanha, solitário, o enterro; num determinado momento, um ladrão que foge da polícia junta-se a ele, chorando, mas, passado o perigo e afastados seus perseguidores, desliga-se do menino, com brusquidão. Colocado num orfanato, o garoto sai dali já adolescente; e empreende uma busca vital junto aos desprotegidos da sorte numa Itália capitalista e ainda carcomida pela guerra. É neste busca ingênua e apaixonante que se empenha Vittorio de Sica para transformar Milagre em Milão (Miracolo in Milano; 1950) num dos mais impressionantes espetáculos da história do cinema; a sensibilidade de De Sica para compor imagens cinematográficas, devidamente apreciadas em Vítimas da tormenta (1946) e Ladrões de bicicletas (1948) é levada a seu grau mais exultante nesta crônica da comunidade pobre de Milão.
As fitas neo-realistas de De Sica traduziam sempre uma atmosfera sentimental; eram pequenas histórias da banalidade cotidiana que tanto poderiam servir aos escapistas melodramas da época, como ao desejo de Cesare Zavattini (roteirista) de tornar o cinema algo “útil ao homem”. O que diferencia De Sica dos autores melodramáticos é esta capacidade de utilizar o trivial com senso de realismo; no caso de Milagre em Milão o inusitado é ainda mais assombroso, porque o toque de irrealidade e magia previsto no roteiro de Zavattini adquire um clima de fábula que em nenhum descaracteriza os pressupostos neo-realistas da construção formal de De Sica.
Tudo é filmado com uma naturalidade e uma espontaneidade soberbas. Os rostos do povo e seus gestos mais característicos são captados por uma câmara brilhante, com alguns enquadramentos que são verdadeiros achados plásticos. As nevascas, a ventania e a neblina que atordoam os pobres desalojados têm uma bela função de contraponto a esta história de amor à vida e ao sonho. Como os engraxates de Vitímas da tormenta e o filho do trabalhador de Ladrões de bicicletas, o protagonista de Milagre em Milão apresenta um bom coração, a despeito do sofrimento do meio em que vive; socorre um garota arrastada pelos ventos, salva um desolado suicida que queria jogar-se contra as rodas dum trem e logo é alçado à condição de líder da comunidade por seus dotes de bondade e por seu carisma.
Magia e realismo se misturam com perfeição na narrativa. As preocupações sociais do realizam topam uma realização artística admirável. Num dos filmes do norte-americano Woody Allen, não me lembra qual, a personagem de Allen altercava com seu interlocutor, acerca de Ladrões de bicicletas, que se deveria esquecer a questão social e deter-se na beleza fílmica contida nas cenas. No caso de um cineasta como De Sica, parece impossível estabelecer esta dicotomia; a questão social está incrustada na questão plástica. E Milagre em Milão o comprova sobejamente.