Crítica sobre o filme "Moça com o Brinco de Pérola":

Eron Duarte Fagundes
Moça com o Brinco de Pérola Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 11/08/2004

Sabe-se que o filme Moça com brinco de pérola (Girl with a pearl earring; 2003), de Peter Webber, teve seu roteiro extraído da ficção escrita pela norte-americana Tracy Chevalier. Mas na verdade o minucioso rigor estético com que o cineasta elabora seu jogo de cores e luzes tem uma inspiração direta: as telas pintadas pelo artista holandês Jan Vermeer no século XVII. Aquilo que o cinema é antes de tudo, a beleza plástica da imagem, tem origens na pintura e depois na fotografia e não propriamente na literatura (que serve, é bem verdade, um certo suporte narrativo ao filme).

As obras cinematográficas que foram à pintura buscar seu coeficiente de deslumbramento perduram na memória do espectador. O norte-americano Vincente Minnelli em Sinfonia de Paris (1950) e o francês Bertrand Tavernier em Um sonho de domingo (1984) refizeram fotogramas inteirinhos à sombra dos mestres impressionistas franceses. A perversidade angelical do renascentista italiano Sandro Botticelli paira sobre as imagens do maravilhoso Piquenique na montanha misteriosa (1975), do australiano Peter Weir. Talvez Webber não logre impor seu trabalho na grandeza destes clássicos, mas, diante da precária vulgaridade do cinema contemporâneo, seu filme é um achado.

A estudada fotografia do português Eduardo Serra capta, com as possibilidades do cinema, a sensibilidade da mão pictórica de Vermeer. E a precisão da música de Alexandre Desplat marca bem o ritmo narrativo. A direção de elenco é notável; se Colin Firth é de fato um ator de grande interioridade, a jovem Scarlett Johansson (que faz sua criada e modelo) exubera no papel da sensível ingênua e perplexa diante de um universo estranho que se lhe abre.

Propondo uma curiosa reflexão sobre a ironia do conhecimento da arte, o filme estabelece uma relação quase indestrutível entre o refinado artista comprado pela aristocracia ignara mas endinheirada da época e a garota analfabeta que revela um surpreendente olho para a pintura. Um pouco à maneira de Celeste (1981), obra-prima meio esquecida rodada pelo alemão Percy Adlon, Moça com brinco de pérola mostra a atração primitiva que uma empregada pode sentir, meio obscuramente, por seu patrão intelectualmente superior; no filme de Adlon, eram as atrações da criada do escritor francês Marcel Proust nos anos finais dele (curiosamente, Proust é um admirador que se deleita bastante descrevendo em suas páginas as pinturas de Vermeer).

O grande plano fixo do quadro “Moça com brinco de pérola” na imagem derradeira da realização de Webber mostra a extrema fidelidade visual de sua narrativa ao processo estético de Vermeer. É como se houvesse uma co-direção entre o cineasta e o pintor.