Crítica sobre o filme "Noite, A":

Eron Duarte Fagundes
Noite, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 08/07/2004

Há cerca de dois anos meu amigo e crítico de cinema Tuio Becker, diante da leitura de alguns comentários cinematográficos que eu habitualmente lhe enviava pelo correio, me incentivava, por carta, a retomar a confecção de livros, gesto começado e interrompido em 1999 com a publicação de Uma vida nos cinemas, pela Editora Movimento de Porto Alegre, opúsculo olimpicamente ignorado pela imprensa. A idéia de Tuio era simples: compor uma narrativa que tivesse por chão os filmes diferentes e fora de moda, entre eles aquelas obras espirituais ou políticas que hoje parecem interessar a um pequeno e envergonhado grupo. (Lembro que o falecido historiador gaúcho Décio Freitas costumava dizer isso do futuro dos que lêem livros, terão de esconder-se em catacumbas para entregar-se a seu culto –os que amam determinados filmes talvez tenham de seguir um caminho semelhante.)

Ao rever A noite (1960), do italiano Michelangelo Antonioni, penso que esta realização poderia ser um bom ponto de partida para o hipotético livro. Ao revelar meu assombro diante de cada visão de A noite e exclamar que se trata de um dos maiores filmes do mundo, estarei eu comunicando-me com algum espectador de hoje? As preocupações estéticas e morais de Antonioni estão mesmo fora de moda, mas permanecem dentro de mim numa colagem plástica em que a precisão dos movimentos da película se abre para uma autêntica memória cinematográfica que é a mais extraordinária interioridade jamais concebida pelo cinema.

Tudo é muito elaborado em A noite. Casam-se os gestos introspectivos dos atores, a articulação dos cenários, a inquietação das frases ditas pelos intérpretes. A simbologia cênica é despojada e vigorosa: o tema do tédio da burguesia (ou sua esterilidade sentimental) é metaforizado na aparição das paredes brancas, nas caminhadas elegantes de Jeanne Moreau ou na face angustiada do romancista vivido por Marcello Mastroianni.

Ao longo das décadas, muitos analistas perceberam as semelhanças temáticas de A noite com A doce vida (1960), de Federico Fellini. Não surpreende: os co-roteiristas de Antonioni foram os mesmos de Fellini. Tanto em Antonioni quanto em Fellini está em cena um intelectual que oscila entre sua sinceridade artística e vender a alma ao mercado; em A noite a personagem de Mastroianni (que também foi o protagonista de A doce vida) é tentada pela figura dum industrial. No início de A noite o casal Mastroianni-Moreau visita um amigo doente num hospital, e, diante da janela do quarto, um helicóptero sobrevoa, ecoando ali o helicóptero que abre grandiloqüentemente A doce vida. Porém estas similitudes de assunto destas duas obras-primas do cinema não conduzem a narrativas idênticas: nada mais diverso do burlesco social de Fellini do que as rugas espirituais de Antonioni; o espetáculo dançado do estilo felliniano aparta-se integralmente da ausência total de concessões ao espetáculo erigida por Antonioni.

De que trata mesmo A noite? Da crise de um casal burguês de Milão, Itália, nos moldes dos começos dos anos 60. O amor-desamor de Giovanni e Lídia é a base da narrativa metafísica de Antonioni, um autêntico cineasta da alma, coisa que no cinema, tido por uma arte física, é uma raridade. A grua descritiva que abre o filme descendo pelos andares de um prédio de onde se vê Milão (enquanto os créditos iniciais desfilam na tela) vai corresponder-se com a panorâmica breve e precisa que fecha a fita circundando um gramado para onde se retiraram os protagonistas no amanhecer depois da festa em casa de alguns aristocratas.

A crise de Giovanni—Lídia vai acentuar-se durante a festa, em que um e outro topam pessoas que lhes despertam interesse embora o desejo de voltar para o parceiro original nunca se ausente. O momento em que falta energia elétrica, mergulhando as imagens em sombras, agrava o caráter tétrico do universo antonioniano. A carta final lida por Lídia, com a câmara invocando as expressões dos atores, e a constatação de que Giovanni, autor da carta, não se vê no que ali está expresso, provoca cortes amargos nas relações estabelecidas pelo filme.

Ainda A noite permite observar o auge duma época cinematográfica em que o star system era mesmo capaz de produzir atores de verdade, à margem do puro estrelismo, ou eram de fato os excelentes e pessoais diretores de atores que faziam das estrelas atores? Mastroianni e Moreau sempre estiveram soberbos diante das câmaras; mas Antonioni logra inventar uma notável Monica Vitti, então sua esposa e musa e que estaria em O eclipse (1961) e na realização em vídeo O mistério de Oberwald (1980). Antonioni confere a marca de seu estilo de filmar a cada modo de atuar de um ator.

Por estas razões, e por outras mais que talvez o livro sonhado por Tuio pudesse esclarecer, A noite é tão fora de moda e diferente que deixa perplexo o observador ainda capaz de amá-lo. Como diz Giovanni/Mastroianni do ser do escritor no universo pragmático estabelecido a partir da metade do século XX, o assistente que devora A noite se questiona: não serei eu um tipo antiquado? Assim, o filme é um bom começo para teorizar ou contar a história do diferente e o fora de moda.