Crítica sobre o filme "Noites Brancas":

Eron Duarte Fagundes
Noites Brancas Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 08/12/2004

O italiano Luchino Visconti, um dos maiores cineastas do mundo, não tem parentesco artístico com o romancista russo Fiódor Dostoievski. Enquanto Visconti alarga os dramas íntimos de suas personagens para uma perspectiva histórica, Dostoievski elimina as referências sociais ou as transforma num elemento do abismo interior de suas criaturas; demais, a forma de análise psicológica contida num filme de Visconti difere muito daquela exposta numa página de Dostoievski: não sei mesmo se o genial escritor russo tem algum parente espiritual no cinema, talvez o sueco Ingmar Bergman em Gritos e sussurros (1972), talvez certos resultados atingidos pelo despojamento de Robert Bresson em Uma mulher suave (1969), extraído duma novela de Dostoievski.

Se Visconti está longe de Dostoievski, é curioso ver como ele se comporta ao adaptar para a tela Noites brancas (Notti bianche), filme de 1957 que passou nos cinemas brasileiros com o título de Um rosto na noite. A novela é da fase inicial do ficcionista russo e exercita ainda timidamente os labirintos mentais que ele conduziria ao paroxismo formal e temático em romances como Crime e castigo (1866), Os possessos (1872) e Os irmãos Karamazov (1880). O filme de Visconti não está entre os mais estimados de sua carreira; dele escreveu o crítico brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes em artigo de 29 de novembro de 1958: “é um filme admirável que nada acrescenta à obra de seu autor ou à carreira da intérprete que o dominou.”

Assim: Noites brancas, filme e livro, conquanto bons e reveladores de dois inquestionáveis talentos artísticos, não são o que de melhor seus criadores legaram ao mundo. Adaptar obras literárias não é algo inusitado na filmografia de Visconti: o mais belos de seus trabalhos, O leopardo (1963), nasceu duma história de Giuseppe Tomasi de Lampedusa; ele invadiu o universo do alemão Thomas Mann no maravilhoso Morte em Veneza (1971); e até sua morte acalentou o megalômano projeto de filmar Em busca do tempo perdido, o romance-rio do francês Marcel Proust, que teria até roteiro pronto, só faltando quem bancasse a milionária produção.

Noites brancas, porém, está distante de ser uma produção ambiciosa, querendo ser mais uma história de amor, quase abstraindo a perspectiva histórica e social que havia, por exemplo, na obra-prima Sedução da carne (1954). Filmando becos miseráveis e pensões ainda piores, contando com os virtuosismos interpretativos de Marcello Mastroianni, Jean Marais e principalmente Maria Schell como Natália, Visconti demonstra sua notável classe de filmar. Mas de maneira alguma ele adota a selvageria psicológica de Dostoievski; está mais próximo das sutilezas interiores de Stendhal.

As variações de volume da música de Nino Rota e o desmaiado preto-e-branco de Giuseppe Rotuno, fotógrafo habitual de Visconti, ajudam a compor um filme formalmente brilhante mas às vezes gratuito e sem profundidade em seu formalismo. Visconti tomou liberdade para com o livro de Dostoievski, que era narrado na primeira pessoa pelo homem que se apaixonara por Nastienka que por sua vez era apaixonada por outro homem a quem ela esperava há um ano; o filme de Visconti é narrado, com inegável brilho, pelo aparato gestual e facial da atriz Maria Schell.