O marco inicial do reconhecimento internacional do cineasta italiano Ettore Scola deu-se com o lançamento da obra-prima Nós que nos amávamos tanto (1975). A multiplicidade de influências estilísticas hauridas por Scola num cinema de grandes mestres como o italiano é passada a limpo neste filme; as recordações evocadas por três amigos que rememoram tudo desde os anos do fascismo, leva o realizador por caminhos da memória cinematográfica, tudo costurado pelo saber do crítico de cinema que é um dos protagonistas: vemos em cena a reconstituição, com a presença do cineasta Federico Fellini e do ator Marcello Mastroianni, da cena do banho público de Anita Ekberg em A doce vida (1960), de Fellini; são mostradas fotografias de O eclipse (1961), de Michelangelo Antonioni; e, coroando as homenagens, surge o depoimento-entrevista de Vittorio de Sica, a quem este filme terno é dedicado, com as inevitáveis seqüências de Ladrões de bicicleta (1948) assomando na montagem.
O cinéfilo que em nome dos ideais briga com o mundo e a família, o advogado interpretado por um então ascendente Vittorio Gassmann e o apaixonado que, após perder sucessivamente a amada para um e outro amigo em tempos diferenciados, a conquista depois de anos e casa-se com ela, são personagens fascinantes, dignos ancestrais das criaturas que Scola colocaria nas telas nos anos seguintes de sua filmografia. Muito berro italiano, misturas da singeleza de De Sica com o barroquismo apocalíptico de Fellini, muita invenção formal no vaivém narrativo, o método de isolar uma personagem tornando estáticos os demais elementos de cena enquanto esta criatura central expõe por palavras seus pensamentos; a repetição experimental por três vezes, no início do filme, da chegada do carro à casa do advogado (em Fata Morgana, 1968, do alemão Werner Herzog, a descida do avião em solo africano é filmada diversas vezes; em Desconstruindo Harry, 1997, de Woody Allen, a cena duma mulher que apeia dum táxi e se dirige a uma residência é repetida exaustivamente).
Em Um dia muito especial (1977) a parafernália da cultura cinematográfica de Scola é eliminada: um estreitamento de cenário e a articulação da linguagem dramática em torno das possibilidades interpretativas de Sophia Loren e Marcello Mastroianni torna as intenções do cineasta mais objetivas que as características meio secretas deste Nós que nos amávamos tanto, uma obra necessariamente empolada. A verdade é que, embora Scola rodasse depois filmes tão bons quanto Paixão de amor (1981), Casanova e a revolução (1982) e O baile (1983), ele nunca chegou a atingir a estatura irretocável de Um dia muito especial e Nós que nos amávamos tanto, duas obras-primas irremarcáveis.