Crítica sobre o filme "Pai Patrão":

Eron Duarte Fagundes
Pai Patrão Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/09/2003

O cinema dos irmãos italianos Paolo e Vittorio Taviani começou a destacar-se internacionalmente com Pai, patrão (Padre padrone; 1977), premiado com a Palma de Ouro do Festival do Cinema de Cannes de 1977, de cujo júri foi presidente o realizador peninsular Roberto Rossellini, que viria a morrer pouco depois. É uma saudável coincidência que Rossellini fosse o presidente do júri que aclamaria Pai, patrão, pois esta película dos Taviani se enquadra com perfeição naquela categoria que o crítico francês Guy Hennebelle chamou “os filmes tardios do neo-realismo”, em seu fundamental livro Os cinemas nacionais contra Hollywood (1975).

Rossellini impulsionou a alavanca do neo-realismo italiano com duas obras-primas, Roma, cidade aberta (1945) e Paisà (1946); estes filmes, exibidos em pequenos cinemas americanos nos anos 40, emocionaram uma atriz de Hollywood, a sueca Ingrid Bergman, que a partir destas projeções começava a apaixonar-se por Rossellini e iria gerar a transformação do método neo-realista numa metafísica cinematográfica diferente em películas como Europa 51 (1951) e Viagem pela Itália (1953). Os Taviani também sofreram a metamorfose de seu realismo cinematográfico ao longo dos anos, pois em sua última obra vista por aqui, As afinidades eletivas (1995), uma adaptação do escritor alemão Goethe, um inusitado refinamento literário sobressaía.

Pai patrão é ainda o auge da essência neo-realista dos Taviani. Parece-me que sua sensibilidade específica está mais ligada ao Vittorio de Sica de Ladrões de bicicletas (1948) do que aos retratos fragmentados e cronísticos de Rossellini. As preocupações realistas dos Taviani se evidenciam na opção por atores amadores, que permitam captar as rudezas populares tal como era o escopo de um certo cinema político (ou politizado) dos anos 70. O amadorismo dos atores não desmancha a clareza fílmica, graças à habilidade dos realizadores-manos para lidar com os elementos aleatórios de tal estética; e mais: visto hoje, o desempenho de Omero Antonutti como o pai patrão está entre as mais brilhantes e verdadeiras interpretações da história do cinema. Outro dado precioso do realismo dos Taviani é utilizar o dialeto sardo, assim como o recente filme brasileiro Desmundo (2003), de Alain Fresnot, se vale dum português de época para melhor caracterizar uma realidade.

Despojado e rigoroso, Pai patrão acompanha de maneira seca, apoética a infância e a adolescência de Gavino Ledda, escritor da Sardenha que contou em livro autobiográfico suas memórias que agora servem de base para a realização do filme dos Taviani. Ao cabo da narrativa é o próprio Gavino Ledda quem, num processo de desdramatização dos cineastas, se dirige para a câmara, dando os retoques finais de sua história e evocando aquele episódio contado no início da fita, o pai de Gavino invade abruptamente a sala de aula para levar seu filho, pois precisa de braços na lavoura. A imagem final do filme mostra, em primeiro plano, as costas de Gavino (o verdadeiro), que está sentado num dos agrestes cenários exteriores em que se passou sua infância e o filme dos Taviani.

Repleto de detalhes da vida rural italiana, Pai patrão tem uma curiosa seqüência de excitação sexual coletiva (de comunidade) quando mostra os meninos copulando com bichos (ovelhas, galinhas) ao mesmo tempo em que se detém na pressa com que se despem na cama os pais de Gavino e depois a câmara debruça-se sobre a vila captando ofegantes respirações eróticas. Há ligações de cenas de diferentes fases da vida do protagonista: o ato de defecar no leite das ovelhas enquanto estão sendo ordenhadas pelo menino e mais adiante pelo adolescente; a esperteza de Gavino que se corta no canto do lábio em criança para dizer a seu pai que foi agredido por ladrões que lhe roubaram duas ovelhas (na verdade ele as trocou por uma sanfona) vai repetir-se com Gavino aos vinte anos quando em sala de aula para não ir ao quadro-negro se corta à mesma altura do lábio em que o fizera em criança. São rimas visuais simples, habilmente evocativas do tempo, que provocam no espectador o prazer da descoberta. Como é prazeroso redescobrir, tantos anos depois, o sabor duma obra-prima dos anos 70, numa pequena mostra de “filmes operários” que o tempo se esforça inutilmente por sepultar.