Se a personagem central de O pianista (The pianist; 2002), o músico judeu-polonês Wladyslaw Szpilman, sobreviveu à descaracterização humana promovida pela turbulência nazista na Varsóvia dos anos 40 do século passado, é bem verdade que o realizador cinematográfico Roman Polanski -igualmente polonês, igualmente judeu, igualmente um artista de sensibilidade-está redivivo no seio da mediocridade do cinema atual, depois de anos confinado em algumas produções indignas de seu talento. Um dia destes, conversando por telefone com um amigo, dei-me conta de que todos os bons filmes de Polanski se situavam lá no fundo do passado; difícil evocar um trabalho do cineasta assinado em anos recentes -sintomático duma fase decadente, sem dúvida.
O pianista recoloca Polanski no panteão dos diretores de exceção. Não precisamos mais necessariamente recorrer às reprises de Repulsa ao sexo (1965), sua obra-prima, para recordar como Polanski foi de fato bom.
O novo Polanski é um pouco atípico na carreira do autor de O bebê de Rosemary (1968), pois envereda por caminhos históricos de observação política. É também a primeira vez em que Polanski resolve mexer num assunto que marcou sua infância: aos seis anos de idade o pequeno Roman fugiu de um gueto deixando para trás seus pais, que ali morreriam, algo assim como acontece com a personagem de seu atual filme: Polanski desvinculava-se ali, em plena infância, de suas origens para tornar-se um cidadão do mundo, este judeu-polonês por acaso (?) nascido numa cidade universal como Paris -rodando filmes pelo globo afora, Polanski foi na verdade um natural do mundo. Em O pianista, além de mostrar que está redivivo, o velho bruxo, tantas vezes comparado com o cineasta espanhol Luis Buñuel, está de volta à pátria e à sua ancestralidade.
O que aproxima O pianista dos outros filmes realizados por Polanski é o caráter sombrio de seu estilo de filmar. Talvez as experiências infantis de um Polanski judeuzinho perseguido expliquem todo o processo estilístico de pesadelo do cineasta; impossível para o realizador deixar de identificar-se na pele de sua personagem, pois vivenciaram coisas assemelhadas, o autor e sua criatura. O pianista é assim uma autobiografia indireta, como muitas vezes são as obras de arte: quem é Madame Bovary?
A cena mais característica e tocante da narrativa é aquela em que um militar nazista se apieda do judeuzinho escondido e, ao ouvi-lo tocar piano, emociona-se e opta por ajudá-lo a sobreviver e não, como seria da lógica do contexto, eliminá-lo. É impressionante a transparência formal de Polanski nesta seqüência: a câmara ora apanha os dedos do pianista espalhando-se por sua emoção corporal de artista, ora se coloca frente a frente com a comoção facial do militar; por cima de todas as diferenças, por cima de toda a selvageria humana, uma forma de arte pode aproximar-nos, diz Polanski com seu inigualável texto cinematográfico. Depois, ao mostrar o confinamento de germânicos (ex-algozes dos judeus poloneses) imposto por soviéticos, Polanski parece querer dizer-nos que todos os totalitarismos se parecem. Só o que pode salvar-nos são os acordes pianísticos do final da projeção: é o banho n´alma com que Polanski encerra o extraordinário diálogo cinematográfico com seu público.