O filme-pensamento do alemão Alexander Kluge é um caso único na história do cinema. Depois de ter mexido profundamente na estrutura cinematográfica em filmes como O poder dos sentimentos (1983) e O ataque do presente contra o restante do tempo (1985), Kluge, emulando a trajetória do italiano Roberto Rossellini na fase final de sua filmografia, refugiou-se no esquecimento da televisão cultural, onde a obra de Rossellini permanece ainda invisível por aqui. No entanto, Kluge tem vivido um pouco mais do que Rossellini para não resistir ao chamamento fílmico. O resultado deste chamamento é uma gigantesca aventura do filme-pensamento: Notícias da antiguidade ideológica: Marx, Eisenstein, “O capital” (Nachrichten aus der ideologischen Antike: Marx, Einsenstein, “Das Capital”; 2008). É na verdade uma dialética entre uma suma do cinema de Kluge e uma aguda reflexão sobre o processo cinematográfico nos filmes de Kluge: o que é o cinema que importa no cinema deste realizador germânico. Certos embates entre o entrevistador Kluge e seus selecionados entrevistados explicam as escolhas fílmicas de Kluge nestas décadas todas: e estas escolhas estão bem caracterizadas ao buscar uma transposição do que interessa nas ideias do livro de Karl Marx (por exemplo, imagens duras da exploração do trabalho infantil nos séculos passados) iluminadas pelo interesse cinematográfico não concretizado do diretor russo Sergei Eisenstein e filtradas pela busca de um estilo de filmar tão totalizante quanto aquele do escritor irlandês James Joyce em seus livros notavelmente obscuros. Em 1929, querendo filmar o texto de Marx à luz da estrutura narrativa do romance Ulysses (1922), de Joyce, o russo foi a Paris em busca de Joyce, que, cego, de nada lhe valeu. O projeto de Eisenstein abortou; o que se diz é que o cineasta soviético queria do texto de Joyce sua motivação estrutural mais simples, se Leopold Bloom de Joyce vive num único dia todas as circunstâncias de uma vida humana, Eisenstein voltaria a centrar a ação num só dia, agora tendo como protagonistas um casal enfrentando todos os dilemas do capital ao longo do dia. Kluge, em seu filme, fala disto, das questões do livro de Marx, das inquietações estéticas de Joyce, mas, entre todas as coisas, o ser que atravessa as circunstâncias é a mercadoria, no caso uma mercadoria-pensamento: como ela se transforma de uma boca-cérebro para outra, opondo-se, encontrando-se, topando muitas vezes o perplexo encadeamento entre coisas que não deveriam encadear-se.
O aparente motivo social do filme de Kluge foi a crise imobiliária nos Estados Unidos em 2008. Em cima disto, a autenticidade estética era o verdadeiro motivo: descobrir as raízes teológicas e metafísicas da célula do mundo contemporâneo, a mercadoria; ver a alma do objeto. Há algo mais lúcido para fazer no cinema do que aprofundar-se na alma das coisas? Em O poder dos sentimentos Kluge reflexionava sobre os conflitos entre a sociedade das coisas e a sociedade dos sentimentos; em Notícias de uma antiguidade ideológica estes conflitos entram no ser, ali se misturam, já não se distinguem. Para dar materialidade a esta internação da coisa no humano, Kluge usa um filme curto dirigido por seu patrício Tom Tykwer, O homem na coisa. O pequeno filme começa com a imagem nula de um céu azul, a câmara desce sobre um prédio e, ao chegar à rua, acompanha os passos apressados duma mulher pelo plano cinematográfico. Antes que a mulher chegue ao fim do quadro, e desapareça, a imagem é congelada, e o narrador-over passa a tergiversar enquanto a câmara rodopia livremente pelos objetos referidos pela voz que narra. Esquecendo o que leva a mulher a correr, a câmara (e o narrador) se debruça sobre detalhes, investigando a história do tecido do vestido da mulher, do couro da bolsa que ela usa e do material da bota que ela está vestindo, e depois se volta para interfones (alude à história dos primeiros porteiros eletrônicos), placas (definidas muitas vezes em complexidade geográfica urbana). O que no curta-metragem de Tykwer poderia parecer um formalismo vazio, brincalhão, no conjunto-montagem de Notícias de uma antiguidade ideológica atinge uma profundidade formal de que só Kluge é capaz.
Equivocadamente o cinema de Kluge tem sido aproximado do cinema do franco-suíço Jean-Luc Godard. O próprio Kluge escreveu: “Encontrei-me com Godard, meu modelo cinematográfico, apenas três vezes na vida.” O equívoco dá-se no seguinte: Godard utiliza excertos do pensamento humano como células de sua forma cinematográfica; há aí uma superficialidade filosófica que não desdoura sua genialidade de filmar. Kluge não: antes do cinema, existe o pensador original; depois o pensamento se exterioriza na criatividade da forma, mas nunca esquece uma profundidade que é pensamento-forma, não está imerso naquelas possíveis facilidades francesas de Godard. Exemplificação característica destas diferenças está no diálogo entre Godard e Kluge num programa televisivo de Kluge chamado “Amor cego”. Questionado por Kluge sobre o que entende por “amor cego”, Godard se refere ao conceito de amar sem perguntas, como os filmes que os mentores da nouvelle vague amavam sem nunca ter visto em face dos azares da distribuição. Então Kluge mostra a imagem de um motorista de caminhão que está cego há um ano; a seu lado seu filho de nove anos o orienta para que ele possa continuar dirigindo. O amor cego concebido por Kluge é mais inesperado e também, ao unir o físico ao espiritual, mais transcendente que aquele de Godard. Amo demais o cinema de Godard. Mas se me obrigassem a apostar minhas fichas finais, eu faria como os jovens críticos da revista francesa Jeune cinéma nos anos 80: apostaria em Kluge.
Notícias de uma antiguidade ideológica se vale de todos os recursos de criação do cinema de Kluge. Muitas vezes a imagem é estática, Kluge fala fora do plano, o entrevistado está em primeiro plano, a imagem-palavra se move criando a ponte dialética entrevistador-entrevistado. Algumas vezes Kluge se insere fisicamente no plano, não porque tenha perdido seu distanciamento brechtiano, mas porque quer acentuar seus paradoxos. Gravuras surgem aqui e ali. Imagens de filmes antigos retornam. Imagens que se movem umas sobre as outras (como enovelando-se) como folhas-miscelânea de um livro rebolam no quadro. Uma tela com vários pedaços de imagens que recortam a visão do espectador. Uma pianista que faz seu trabalho enquanto os cenários de fundo se permutam, com a utilização de filmes diversos a cada movimento. No fim, o filme começa com o dedilhar duma pianista e vai terminar com as expressões retorcidas de um exótico pianista.
Pode-se dizer que Kluge filmou o mundo contemporâneo com o pensamento de Marx e as obsessões formais de Joyce. Um e outro são muito famosos e pouco lidos. Qual será o destino de Kluge no mundo do cinema futuro? De mim, concluo este texto aludindo a Machado de Assis, que, no começo de Quincas Borba (1881), erige seu burguês fracassado, o futuro louco Rubião. Rubião estava fitando a enseada de Botafogo. E, no discurso indireto livre, Machado sai-se: “Que era há um ano? Professor. Que é agora! Capitalista.” Júlio Bressane, um cineasta brasileiro que já utilizou intertítulos inclinados e arrevesados embora não tão barrocos e coloridos quanto estes espalhados por Kluge ao longo de Notícias de uma antiguidade ideológica, poderia filmar Marx lendo Machado de Assis.