A partir de determinado ponto de sua carreira o comediógrafo norte-americano Woody Allen passou a revelar uma preocupação latente em suas narrativas: a função do cinema. Difícil definir onde Allen começou a substituir aos seus complexos de judeu nova-iorquino intelectual esta discussão mais ampla, este questionamento de sua própria atividade de cineasta; foi ali por meados dos anos 80, em pleno domínio dos seus meios de expressão, esbanjando maturidade artística, ele entrou a surpreender seus críticos mais severos.
Zelig (1983) utilizava a forma documentária para analisar estas relações do filme com o espectador; se Zelig, a personagem, adquiria a aparência de seu meio para melhor conviver, Zelig, o filme, parecia um verdadeiro documentário para com mais facilidade passar sua idéia ao assistente. Mas foi, finalmente, em A rosa púrpura do Cairo (1985) que Woody Allen chegou a situações bastante estranhas para expor as obsessões metalingüísticas de uma certa fase de sua trajetória pelo mundo do cinema; enquanto Zelig apela para o documentário, como maneira de pôr em xeque o relacionamento da realidade com a ficção, em A rosa púrpura do Cairo Allen trata a mesma temática, mas valendo-se de um novo gênero, algo a que se poderia chamar ultra-ficção, onde as linhas ficcionais são propositadamente exageradas (exageração que é fonte do sarcasmo habitual do diretor).
A metalinguagem é um evento estético cuja larga utilização pela arte contemporânea nem sempre tem sido crítica, muitas vezes a gratuidade é sua característica. Sendo um elemento estético característico do século XX, a metalinguagem teve precursores tão antigos e geniais quanto Dom Quixote (1615), de Miguel de Cervantes, ou Tristram Shandy (1767), de Laurence Sterne; a função essencial da metalinguagem é discutir o próprio meio de expressão, e o fracasso de muitos em suas investigações metalingüísticas dá-se pelo desconhecimento desta função essencial.
Voltando ao cinema e ao extraordinário A rosa púrpura do Cairo, pode dizer-se que Allen dissecou de maneira fantástica o comportamento dos espectadores diante do cinema. Misturando com grande criatividade o universo do filme a que Cecília assiste com o universo “real” em que vive Cecília, atingindo uma excitante confusão na análise das relações entre o ator e a personagem que ele cria, mas sobretudo demonstrando profundidade e senso crítico ao nos atirar na cara a mais pura estranheza conosco mesmos e com a fita que estamos vendo, Woody Allen leva às mais inusitadas conseqüências as possibilidades de uma fantasia crítica no cinema.