Crítica sobre o filme "Umberto D.":

Eron Duarte Fagundes
Umberto D. Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 05/01/2004

Num destes muitos filmes do norte-americano Woody Allen ambientados na alta burguesia intelectual nova-iorquina (arriscando, creio que se tratava de Manhattan, 1980), as personagens saíam dum cinema discutindo Ladrões de bicicleta (1948). Lembro que alguém insistia muito na questão social deste filme italiano, insistia e repetia-se. Então a criatura de Allen, certamente porta-voz do próprio cineasta, vinha com outra interpretação: que se esquecesse a questão social, que se atentasse para a beleza da narrativa independentemente da urgência política de que ela se revestia.

Vittorio De Sica, o realizador de Ladrões de bicicleta, foi um dos nomes básicos do neo-realismo peninsular, escola de cinema que imperou nos anos 40 e 50. Sua associação com o roteirista Cesare Zavattini é um destes casamentos cinematográficos lendários ao qual devemos maravilhas; aqueles que julgam que um roteiro é tudo em cinema (quando na verdade é somente seu esqueleto) atribuem a Zavattini a autoria das películas de De Sica desta fase.

A possibilidade de conhecer, ainda que no formato de dvd, Umberto D. (1951), um dos mais brilhantes trabalhos legados pela dupla Zavattini—De Sica, pode ajudar a esclarecer alguns pontos do que Allen queria insinuar (a estética seria mais importante que a política?) e a entender se Zavattini e De Sica poderiam existir no cinema um sem o outro. Como em todos os filmes que De Sica rodou nesta época, um país miserável, arruinado pelo pós-guerra, está em cena; já nas primeiras imagens o espectador dá com uma passeata de aposentados (todos muito velhos, pois então não se aposentavam pessoas mais jovens) reivindicando aumento de seus paupérrimos salários e logo sendo escorraçados pela polícia.

No entanto, a busca de uma espontaneidade vital perseguida pela câmara “social” de De Sica nunca o impedirá de adotar certos rigores de composição que conferem extraordinária plasticidade a suas imagens. Poucos diretores de cinema lograrão inserir com tanta precisão o gesto humano na linguagem cinematográfica; a beleza de certas angulações, a maneira de dispor pessoas e objetos dentro do plano, a certeza de cada movimento do ator, tudo obedece a uma função que escapa a um certo amadorismo realista e documentário; se se quiser ter à mão o resultado plástico deste procedimento, o vídeo ou dvd é a fruição exata –dê-se um congelamento em qualquer fotograma, e ver-se-á como tudo, sob a aparente simplicidade, é fruto de uma estética muito estudada visando àqueles efeitos plásticos que a personagem de Allen já apontava na altercação com seu cético interlocutor.

Igualmente se pode perguntar: Zavattini escreveu a cena do reencontro de Umberto com seu cãozinho Flike, que tinha fugido de casa; certamente um texto deste trecho teve lá seus arroubos sentimentais. Só um diretor de grande habilidade para a encenação lograria evitar a pieguice ao filmar isto. De Sica é tão bom aqui quanto o francês Jean Renoir nas seqüências mais ironicamente melodramáticas de Toni (1934), a matriz de todo o realismo cinematográfico. A propósito, Umberto D. é construído um pouco como este velho filme de Renoir: nada acontece senão nas almas das personagens, almas que são feitas de gestos minúsculos.

Umberto, o velhinho aposentado, e Maria, a jovem grávida cujo coração e barriga hesitam entre dois rapazes, estão entre as mais profundamente humanas personagens da história do cinema. O cãozinho Flike, que evita no fim o próprio suicídio de Umberto (um evitar que brota espontaneamente das coincidências), é um contraponto, e sua função no filme assemelha-se um pouco àquela da bicicleta desaparecida em Ladrões de bicicletas.

Enfeixando este rosário crítico, sabe-se que Umberto D. foi um eterno fracasso de público. Compreensível: o cinema, um espetáculo habitualmente freqüentado por jovens, tem dificuldades em assimilar a velhice como objeto interessante. A juventude não gosta de ver-se no espelho da velhice. Em Laranja mecânica (1971), de Stanley Kubrick, o jovem Alex e sua gangue espancam um velho debaixo dum viaduto, e quando, na segunda metade do filme, um grupo de velhos ataca Alex, a voz-over deste exclama: “Era a velhice se vingando da juventude.” Em Mr. Arkadin (1955) o ser vivido por Orson Welles, também diretor do filme, vê um velho atirado na rua e rosna com asco: “É a velhice!” Compreende-se, pois, que Umberto D. seja vítima do preconceito etário-cinematográfico.

Mas, para além do debruçar-se sobre a solidão e a miséria de um idoso, a obra-prima de De Sica antecipa aquele rigor formal com que outro italiano, Michelangelo Antonioni, incluiria os gestos das pessoas na estética fílmica. Lado a lado com Era uma vez em Tóquio (1953), do japonês Yasujiro Ozu, Umberto D. é uma contemplação cinematográfica sobre a velhice como nenhuma outra.