Crítica sobre o filme "Viagem de Chihiro, A":

Eron Duarte Fagundes
Viagem de Chihiro, A Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/12/2003

Quando se aposentou do jornalismo cinematográfico, que executara com brilho incomum ao longo dos anos, em 2001, o crítico gaúcho de cinema Tuio Becker me disse uma frase curiosa: “nunca mais, desenho animado!” Isto certamente significava que a animação cinematográfica por via de regra estava associada a aborrecimento na cabeça de Tuio; o grande analista de filmes só via animações por obrigação profissional, necessidade jornalística de opinar sobre tudo o que os cinemas exibiam. Um dia destes, numa sessão do Clube de Cinema, lá estava Tuio para ver o medíocre Procurando Nemo (2003), de Andrew Stanton e Lee Unkrich; se Ingmar Bergman não tem cumprido a promessa de abandonar o trabalho e aquietar-se em sua ilha como alardeou faz vinte e um anos, Tuio igualmente não é obrigado a cumprir o que disse num momento de descontração pós-aposentadoria.

É bom que assim seja, pois aparecem as surpresas. O desenho japonês A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kanikakushi; 2001), de Hayo Miyazaki, recupera a dignidade e a inteligência do gênero, fazendo com que se esqueça toda a futilidade e os lugares-comuns adotados por algo como Procurando Nemo. Miyazaki abdica dos fricotes tecnológicos da atualidade para, por meio de imagens de raro senso cinematográfico, atingir uma beleza plástica que nunca deixará de encantar o espectador mais afinado com sensibilidades elaboradas.

A viagem de Chihiro trafega entre a realidade e o sonho com espantosa naturalidade. A partir do momento em que os pais da garotinha Chihiro pegam um atalho e desviam-se do caminho, este é um atalho para a imaginação e toda a fantasia (sombria e surrealista, é verdade) é possível, pois tudo se passa na mente da pequena protagonista. O filme segue a estrutura livre de um sonho, como poderia vir a ser a de qualquer filme, sonhar no escuro dos cinemas de olhos abertos; as excentricidades das imagens amontoam-se, obedecendo a um ritmo narrativo íntimo e subjetivo. Os pais da menina, de tanto comerem, viram porcos. Os mais estranhos seres aparecem em cena. Há um trem que anda por mar e terra, solitário, cruzando os cenários da narrativa. Chihiro sente-se solitária e opressiva diante dos monstros que estão à sua volta: apartada dos pais, ela é esmagada por seus excessos de imaginação, algo capturado com brilho pelo filme; vemo-la de serviçal dos opressores de sua mente, seres excêntricos de toda ordem. Até que a fantasia se desmancha e volta a “livre” realidade. Chihiro olha para trás, para a estrada de que ela e seus pais saem: sonhou? imaginou? que diabo foi isso? Nem tudo tem explicação racional nas imagens criadas pelo filme: como num sonho, há coisas meio secretas, que mais parecem captações de sentimentos do que mensagens lineares. Sim: A viagem de Chihiro adota certos conceitos experimentais de filmar; mas mesmo em seus instantes mais obscuros é bonito de ver.

Em suma, creio que A viagem de Chihiro mereceria que Tuio Becker revisasse nosso habitual preconceito contra os desenhos animados. Está próximo duma obra-prima, se é que o futuro não o chamará assim. O que pode estorvar sua plena fruição é uma certa aridez oriental a que o observador brasileiro não está habituado; vencidas estas asperezas, o deslumbramento se impõe.