Viridiana (1961) é uma espécie de síntese da obra cinematográfica do espanhol Luis Buñuel. E representa igualmente uma virada em sua vida e em seu cinema. Significa a sua volta à Espanha, depois do longo exílio mexicano. E, após filmes de franca crítica social como Os esquecidos (1950) e Nazarin (1959), Buñuel passa a introduzir elementos de sutileza psicológica que ele depuraria extraordinariamente em obras-primas como Tristana, uma paixão mórbida (1970) e Esse obscuro objeto de desejo (1977). Mas há uma grande unidade de pensamento e rigor estético em todos estes trabalhos citados; o estilo de Buñuel tem algumas constantes que o tornam inconfundível, e é de suas variações possíveis que o cineasta extrai a sedução com que ele invade a intimidade mais secreta do espectador.
A história da uma jovem madre que, objeto de desejo de seu tio (um velho e lascivo burguês como tantos do universo de Buñuel), abandona o convento e se mete a utilizar os dogmas da Igreja no seio de primitivos mendigos, tem uma perversidade exemplar. Não espanta que o filme tenha sido interditado na Espanha franquista; se em Nazarin o padre fere os mandamentos clericais ao fazer certas opções de vida, mas não erradica de si o espírito piedoso do catolicismo, em Viridiana a ex-freirinha, sem embargo de promover no cenário da burguesia (o casarão de seu tio, que se suicidou porque ela não aceitou seu louco amor) uma ceia de mendigos, é suficientemente cruel em seu interior para que Buñuel estabeleça uma devastação da religiosidade humana.
Em Viridiana há cenas bastante estranhas que, isoladamente, deveriam ser pesadelares. Mas Buñuel filma tudo com desenvoltura que dá aparência natural a seqüências desorientadoras, como a dos mendigos no cenário burguês. Um filme meio louco, meio ingênuo, que não assume o papel de farsa a que é tentado. Nos signos católicos de que se vale Buñuel não existe a atmosfera farsesca a caricatural de um Federico Fellini; a cruz e a coroa de espinhos guardadas na caixa da virgem, assim como suas orações com os mendigos, não tem a grandiloqüência barroca da cena que abre A doce vida (1960), o épico contemporâneo de Fellini (a estátua de Cristo sobrevoa Roma, dependurada de um helicóptero), nem o clima místico de certas sessões espíritas deste mesmo filme.
A atmosfera erótica de Viridiana é um dos pontos máximos da inventividade de Buñuel. Estávamos então longe da liberação sexual do cinema dos anos 80 em diante. Buñuel sempre se confessou um pudico. E incapaz de matar uma aranha. Mas sua capacidade de sugerir o lado perverso do comportamento sexual humano supera qualquer fantasia sexual contemporânea. O detalhe de um joelho de Sylvia Pinal, uma troca de olhares em primeiro plano, uma sugestão do diálogo, tudo é conduzido para que a criação de uma sexualidade sufocada, reprimida transpareça por baixo da imagem. Esta sexualidade asfixiada, que se abre reveladora no momento em que a câmara avança sobre o rosto da virgem narcotizada por seu tio que quer possuí-la, vai mesmo explodir na cena final, em que a criada e a virgem parecem disputar num jogo de cartas a posse do filho burguês do suicida.
Talvez Buñuel não seja mesmo um homem decididamente cruel. O que deve ser mesmo cruel é o mundo segundo a ótica de Buñuel, que procura utilizar uma linguagem de símbolos para entender este mundo. Mundo de significados complicados, mas transformado em imagens aparentemente realistas, naturais, onde Buñuel dissimula os truques usados para contar sua história.