À saída da sessão, um sisudo espectador não se conteve de exclamar: Â´Â´É uma obra de cinema!" Quem escreve deve estar sempre atento para as armadilhas dos significados das expressões; usamos muitas vezes palavras iguais para designar coisas muito diferentes. É preciso às vezes explicar e adjetivar para chegar à raiz do que se quer dizer. Que é que significa mesmo uma obra de cinema? Cinema seria de fato imagem ou é antes uma relação entre imagens, uma imagem que vibra diante de outra, ou seja, a sintaxe? Traçando um paralelo que pode desagradar aos puristas de uma e outra área, pode-se questionar: que é que significa mesmo uma obra de literatura? literatura é palavra ou relações entre as palavras? que palavra é literatura, que imagem é cinema? Se o cinema é feito para os olhos, e olhos não são a janela mas a superfície da alma (não se assuste o leitor, é só um jogo metafórico com a questão dos significados das palavras), Abril Despedaçado, de Walter Salles Jr., é uma obra de cinema, capaz de impressionar o lado primeiro da visão por uma certa seriedade e beleza estilística na composição da "imagem nacional"; tentando colocar em cena personagens meio simbólicas que evocam o cinema de Glauber Rocha, sem todavia impor a revolução de linguagem do cineasta baiano, preferindo antes uma certa plasticidade clássica, o realizador de Central do Brasil (1998) e O Primeiro Dia (1999), dois filmes bastante mais conscientes e agudos que estes pedaços do interior do Brasil de seu trabalho atual, envereda por um caminho de inautenticidade.
O lado inautêntico da realização de Salles Jr. "salta aos olhos" de quem puder sobreviver a seu brilho técnico. Ao transpor uma história albanesa para o Nordeste brasileiro, o cineasta enredou-se em alguns problemas que buscou solucionar com um altissonante estilo de filmar, a despeito da singeleza das vidas encenadas. O elenco está desarticulado, Rodrigo Santoro não tem o vigor de um protagonista de cinema, só o característico José Dumont salva-se do artificialismo das interpretações que aqui e ali remete a um tempo meio precário de falas cinematográficas no cinema brasileiro.
Abril Ddespedaçado poderia ser o grito dos rincões perdidos se fosse menos pretensioso em seus aspectos visuais.