Crítica sobre o filme "Anahy de Las Missiones":

Eron Duarte Fagundes
Anahy de Las Missiones Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 08/04/2001

Ao apresentar seu filme Heimweh/Nostalgia (1990), longa-metragem em 16 mm realizado a quatro mãos com Tuio Becker, ao público da Mostra Internacional de Cinema em setembro de 1990, o cineasta Sérgio Silva afirmava que seu trabalho era um pouco como a coragem de seu protagonista, que no interior gaúcho do início do século ousou encenar Schiller. Sete anos depois, Sérgio conta com recursos incríveis de produção considerando-se a eterna incipiência de nosso cinema, para rodar seu primeiro longa-metragem em 35 mm: Anahy de las Misiones (1997) se insere na linha de filmes brasileiros que buscam os favores do público, de que O quatrilho (1996), de Fábio Barreto, é o carro-chefe. Seria possível? Seria demasiado louco que um realizador dos confins do sul pretendesse ombrear-se com um filho do clã Barreto?

Ocorre que o filme de Sérgio é bastante melhor que o de Barreto. Sérgio é mais diretor, seu longo aprendizado no meio amadorístico e esquecido do cinema gaúcho lhe ensinou muita coisa e veio a produzir uma narrativa cinematográfica surpreendente. Para sorte de nossa análise, há pontos em comum entre O quatrilho e Anahy; vamos examinar o que estes pontos geram na tela. Tanto na fita de Fábio quanto na de Sérgio temos uma reconstituição de época e a adoção dum linguajar dialetal nos diálogos; o dialeto italiano da serra gaúcha num e o falar gauchesco no outro. A pintura de época de Sérgio é mais rigorosa e pessoal, os atores se adaptam melhor às personagens. É verdade: inicialmente o naturalismo da reconstituição (dos tipos, da linguagem) em Anahy se enrola nos mesmos problemas de ausência de espontaneidade do filme de Fábio, a seqüência em que Anahy e Joca Ramires trocam lembranças à mesa (a despeito da experiência de Araci e de Paulo José, que os interpretam) é chave neste processo de transição da passagem de um modo constrangedor de expressar-se a uma audição mais fluente; porém, com o correr das imagens, Sérgio demonstra sua perícia de diretor, montando um drama épico muitas vezes mais crítico que as trivialidades sentimentais expostas em O quatrilho.

Em Anahy de las Misiones vários talentos se uniram para gerar o produto final. No roteiro houve a participação do escritor gaúcho Tabajara Ruas; nota-se aqui e ali a capacidade de dialogação do autor de O fascínio (1997). A música foi entregue a uma de nossas melhores cabeças musicais, Celso Loureiro Chaves. A fotografia de Adrian Cooper capta em alguns planos gerais e panorâmicas o senso épico dos pampas. Conduzindo a consciência do filme, a atriz Araci Esteves espalha sua capacidade interpretativa pelo celulóide, chegando a seu grande momento na cena em que a intérprete se atira à lama extravasando o dilaceramento da dor de sua personagem. Mas todos estes talentos são dispostos com sentido de cinema por Sérgio Silva.

Sete anos depois de Heimweh/Nostalgia, as palavras de Sérgio sobre a coragem de fazer cinema voltam à cabeça de quem vê Anahy de las Misiones. Num cinema que busca sua ressurreição muita vez no cosmopolitismo e recorrendo amiúde a diálogos em inglês, é coragem contar uma história regional, numa linguagem regional e arcaica. Com extrema singeleza de tons e num ritmo cinematográfico sutil e quase contemplativo, Sérgio narra uma história à margem da guerra dos farrapos; uma mulher e seus filhos cruzam os caminhos da história, esquecidos do tempo. Não é bem esta a função de um cinema crítico, a de dar imagem e som aos esquecidos, como diz o título duma obra-prima de Luis Buñuel?