Crítica sobre o filme "Desmundo":

Eron Duarte Fagundes
Desmundo Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 29/05/2004

O cineasta paulista Alain Fresnot realiza seu projeto mais audacioso com Desmundo (2003), adaptação para o celulóide de um dos muitos romances históricos de Ana Miranda. Fresnot, realizador de Lua cheia (1989) e Ed Mort (1996), exacerba a dureza de linhas de seu cinema ao fazer sua câmara mergulhar nas origens da história brasileira; o século XVI nacional é reconstituído em toda a precariedade de seu primitivismo e toda a miséria de sua insociabilidade. Para tanto, Fresnot busca um rigor formal meio inusitado para os padrões comerciais; se Osmar Prado tem um desempenho voraz como o fazendeiro quinhentista que compra uma jovem para casamento e Simone Spoladore é sensível na pele desta jovem vendida, a direção de arte de Adrian Cooper faz notáveis redemoinhos para recapturar um passado estranho (e que nem parece nosso) e o diretor Fresnot chega ao clímax de sua pretensão de fidelidade histórica ao construir diálogos em português arcaico, de acordo com as linhas sugeridas pelo filólogo Helder Ferreira. É verdade que não se sabe bem que português arcaico era falado na colônia, os registros para a posteridade são o do português arcaico escrito e a distância entre a língua escrita e a língua falada era ainda mais acentuada nos tempos de antanho; é verdade também que Fresnot comete uma concessão comercial ao legendar o português antigo com letreiros em português contemporâneo, o que ameniza a perplexidade do público mas diminui o poder de estranhamento iniciado pela imagem; todavia são problemas que não retiram a beleza e o esforço brilhante desta obra cheia de dignidade de um cinema brasileiro que já não se faz.

Desmundo, de certa maneira, se parece com o clima de alguns filmes do português Manoel de Oliveira, especialmente o maravilhoso Palavra e utopia (2000), cuja atmosfera de tempo parece imitada, à distância, por Fresnot. Na seqüência em que marido e amante se enfrentam, apontando as armas um para o outro, disputando a mulher, a câmara movendo-se circularmente, o cineasta refaz uma cena de lugar-comum do cinema americano, dois homens se apontam armas, mas com uma inventividade formal que remete, ainda que palidamente, ao cinema de Glauber Rocha; o tiro (tensionado, esperado) fecha a seqüência, um brevíssimo intervalo de escuridão da tela, corte para o grito de Simone (ela já não está apavorada com a briga de seus homens, mas está dando à luz um bebê, cercada por índias debochadamente risonhas, numa cena de surrealismo pré-histórico). A derradeira imagem é a deste bebê, numa rede com a mãe (a rede está sendo carregada pelos empregados do fazendeiro, que segue na frente), bebê que não se sabe se é legítimo ou bastardo, talvez filho do amante morto pelo marido (quem sobreviveu ao duelo é o marido, como se depreende do conteúdo das imagens finais). Origens do Brasil: legitimidade ou bastardia?