Crítica sobre o filme "Invasor, O":

Eron Duarte Fagundes
Invasor, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 26/06/2004

Literatura e cinema não são a mesma coisa, o cinema não é um gênero da literatura, mas uma e outro se intercambiam, como acontece na relação entre todas as artes. Há quem julgue que o cinema seja mais parente das artes plásticas; neste sentido o diretor de fotografia é mais importante que o roteirista. Há até quem julgue que o cinema nem sequer seja arte, só um divertimento industrial; é o que pensam alguns intelectuais que reagem negativamente a qualquer meio de comunicação que em algumas de suas formas possa ter a pretensão de dialogar com as massas. O lado narrativo-literário do cinema vem da existência de um roteiro escrito. Certa vez o crítico carioca José Carlos Avellar se perguntava num livro por que anotamos os filmes no papel antes de filmá-los, por que não os desenhamos? Em literatura, é bom lembrar, o gaúcho Erico Veríssimo revelou em seu livro de memórias que desenhava suas personagens antes de começar a compor seus romances. Enfim, a questão da possível origem literária de uma certa parte do cinema é complexa.

Mas o roteiro é tão-somente o esqueleto de um filme. Um bom roteiro é um ponto de partida para um bom filme, mas não é garantia. E que é mesmo um bom roteiro? Pode-se falar de um bom roteiro -literariamente-e de outro bom roteiro -cinematograficamente. Os roteiros do sueco Ingmar Bergman e do francês Eric Rohmer têm extraordinário peso literário. Já não se pode dizer o mesmo dos roteiros do brasileiro Carlos Diegues, cuja armação cinematográfica chega algumas vezes, como em Chuvas de verão (1978), a produzir obras extraordinárias. A importância da palavra na literatura é cem por cento; no cinema é só um dos elementos, que pode ter relevância como em Rohmer e em seu patrício Alain Resnais e pode ser secundário como em Quentin Tarantino.

Aí chegamos ao cineasta Beto Brant e ao romancista Marçal Aquino. Brant é admirador de Tarantino e seus roteiros, cuja parceria com o ficcionista Aquino é constante, mergulham num submundo tratado pelos roteiristas com nenhuma literatura. Mas os filmes são bons, conseqüentes, envolventes.

O invasor (2001), o filme de Beto Brant, foi mal lançado em Porto Alegre e o público deixou de descobrir uma obra cinematográfica que poderia seduzi-lo como espetáculo, pois a habilidade de Brant para a narrativa policial é uma raridade em nosso cinema; e ele logra este feito sem concessões comerciais, sem perder o pé na dura realidade brasileira. A falta de mão para o gênero policial no Brasil é exemplificada pelo cineasta Roberto Santucci Júnior e seu desastrado Bellini e a esfinge (2002). São muitas as coincidências entre a realização de Brant e a de Santucci. Ambas nasceram da transformação de livros (cuja fundamentação literária é discutível) em filmes. O universo dos dois filmes é o mesmo; isto é, circula pelas figuras de corruptos, drogados, assassinos, prostitutas, cuja linguagem é incorporada aos diálogos de maneira quase naturalista. A coincidência mais saliente vem da presença da atriz Malu Mader, que vive nos dois filmes a mesma personagem: uma meretriz fatal. Claro: o roteiro de Brant/Aquino é mais organizado, tem mais cabeça, mas a diferença essencial é o cérebro cinematográfico que maneja a câmara. O visual adrede despido e despojado e os movimentos trêmulos da câmara asfixiam o observador diante da visão do filme, rodado inicialmente em 16 mm (o que lhe confere a característica desfocada própria para o mundo em foco) e depois passado para a bitola comercial de 35 mm.

A novela O invasor (2002), de Marçal Aquino, é gêmea do filme de Brant: o texto literário vinha sendo elaborado por Aquino e foi concluído após a rodagem do filme. A Geração Editorial oferece ao analista algo soberbo: a narrativa de Aquino e sua transformação em roteiro cinematográfico. A verdade é que a tentação do cinéfilo é envolver-se com o livro graças à memória do filme, despersonalizando-se criticamente; mas ao observador literário parece claro que a obra de Aquino, conquanto bem armada, não tem peso literário. Não que o submundo em que mergulhe não mereça voz na literatura. Há alguns anos o carioca Paulo Lins lançou um belo e extenso romance, Cidade de Deus (1997), há pouco vertido para filme (inédito por aqui) e que vai ao baixo universo dos marginais do Rio para dali extrair sua pujança literária. O problema é que O invasor de Aquino parece isto mesmo: anotações para um filme. Fazer da literatura trampolim para um filme abastarda a literatura, assim como reduzir o cinema a mera literatura pode torná-lo pedante.

No filme de Betro Brant a palavra é menos importante do que a posição ou o movimento da câmara ou a especial fotografia que dá o tom sujo que interessa para expressar um determinado meio social. No livro de Marçal Aquino sentimos falta da sofisticação da câmara para destrivializar o texto. O roteiro aposto à novela, roteiro muito técnico, cheio de referências à personagem da câmara, leitura árida e sem emoção (diferentemente da novela, que sobrevive graças à articulação fácil do suspense, e do filme, rodado com brilho em sua linguagem de cinema), dizia eu que o roteiro corporifica a ausência da câmara na novela de Aquino.

"47 EXT. INT. FRENTE E INTERIOR DA CONSTRUTORA - DIA

Plano-seqüência. Câmera serve de ponto de vista para mostrar a fachada da construtora e depois segue em direção à porta. Câmera entra na empresa e chega até a recepção onde está a garota recepcionista, que neste momento está ocupada falando ao telefone. Ela ergue os olhos, vê o recém-chegado. Este passa por ela e se dirige para o corredor, não dando tempo de que ela interrompa sua ligação para falar com ele.

Ponto de vista segue pelo corredor, observando os setores e funcionários da construtora, que olham para a câmera/ponto de vista.

Câmera chega à mesa de LÚCIA."

Esta cena, no filme, revela a fundamental essência cinematográfica da câmara no filme de Brant. A mesma cena, no livro de Aquino, segue o esquema fácil de todo o livro. Aquino, bom roteirista de cinema, não logrou topar em sua novela um correspondente literário para as rupturas visuais criadas por Brant em seus filmes. De que O invasor é o ponto alto.

NOTA FINAL: Se a novela de Aquino é narrada na primeira pessoa por Ivan, a linguagem cinematográfica de Brant descarta este recurso "literário", substituindo este narrador pela câmara, a certa altura do roteiro chamada apropriadamente ponto de vista. Da novela para o roteiro-filme algumas alterações ocorrem, como algumas frases ainda mais naturais na fala e a troca de nomes: Alaor vira Gilberto, vulgo Giba, e a prostituta Paula se transforma em Cláudia, a personagem de Malu Mader.