Segundo o crítico José Lino Grünewald, não há autor em cinema, no mesmo sentido em que falamos do autor de uma pintura ou de um livro; o diretor cinematográfico é um administrador, a obra fílmica é sempre o resultado de um trabalho de equipe mesmo naquelas realizações em que os analistas identificam a forte personalidade de um cineasta (Ingmar Bergman, Robert Bresson: espíritos que, no cinema, mais se aproximariam da figura solitária do romancista; ainda aí José Lino contesta a tese do autor de cinema).
Em 1995 o ficcionista gaúcho Tabajara Ruas escreveu um de seus romances mais pessoais e bonitos, Netto perde sua alma. No livro podíamos identificar seqüências metafóricas belíssimas, cenas que pareciam extraídas de alguns quadros em câmara lenta de filmes de Sam Peckinpah ou Walter Hill. Por exemplo:
"(Como eram formosos os cavalos à luz da lua, e como eram formosos à luz da madrugada, como eram formosos quando a cerração do inverno cobriu os campos e expeliam pelas narinas fumaradas de vapor esbranquiçado, e como eram formosos ao crepúsculo do verão, vistos através da poeira avermelhada, e como eram formosos dando corridas e pulos e relinchos alegres num meio-dia de primavera.)"
Seis anos depois, na onda de adaptações literárias do atual cinema brasileiro (algumas já vistas, outras em fase de produção ou pré-produção), podemos ver como um escritor dirige um filme baseado em seu próprio livro. Netto perde sua alma (2001), co-dirigido por Ruas e Beto Souza, não deixa de surpreender pelo senso de cinema imposto (ou descoberto) por Ruas, um homem de letras; e, apesar dos achados de seu ritmo plástico, mostra claramente as diferenças entre a autoria na literatura e no cinema. A introspecção pessoal do livro é substituída por um esforço de filmagem de equipe no filme; Ruas, escritor mas também atento cinéfilo, revela sua aprendizagem: os planos abertos e as seqüências de batalha não são nada rígidas ou acadêmicas, expelem beleza e frescor, os travellings rápidos e flutuantes pelos corredores do hospital em que está o general Netto (o filme, como o livro, é um jogo de memória numa cama de doente) são inseridos no tempo e no espaço certos da narrativa. Netto perde sua alma está a exclamar como um escritor pode fazer um filme cinematográfico, em que suas origens literárias (alguma coisa dos diálogos e mais ainda os liames narrativos que deixam entrever uma certa estaticidade da montagem) são tão sutis que só um olho mais acurado pode perceber.
O Ruas diretor não é tão pessoal quanto o Ruas escritor; está bastante dependente de sua equipe e dos recursos com que conta. Mas sua segurança de direção surpreende. Contando com um desempenho admirável de Werner Schünemann no papel central, Ruas e Souza articulam corretamente todos os pontos da realização, da fotografia de Roberto Henkin à bonita faixa sonora, passando pela utilização dos movimentos de massa que nada ficam a dever ao bom cinema que os cineastas devem ter freqüentado muito para chegar a este belo filme.