Crítica sobre o filme "Paris, Texas":

Eron Duarte Fagundes
Paris, Texas Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 30/05/2012

Na capa de seu livro Olhos não se compram (1983), cujo assunto é a filmografia do alemão Wim Wenders existente até 1983, o ensaísta germânico Peter Buchka usa como fotografia um daqueles planos enigmáticos e enviesados onde aparece o rosto da atriz Nastassja Kinski que se volta insinuadamente para a câmara, um plano extraído do filme Paris, Texas (1984), que era na época do texto de Buchka a mais recente realização de Wenders e que finalmente passava a conquistar aqueles espectadores mais resistentes ao estilo de filmar de Wenders, onde a exasperação dos cenários e a lentidão dos propósitos narrativos causavam um choque visual-experimental próximo do incômodo (para o grande público) sentimento do amadorismo cinematográfico. Mesmo que filmado ainda com os planos vagarosos característicos de Wenders, Paris, Texas trazia uma carga dramática que era inusitada em seu cinema até 1984; as experiências americanas com Hammet (1978) e O amigo americano (1977) permitiram ao cineasta elaborar as fusões entre a América e a Europa da maneira tão notável e madura como está em Paris, Texas, onde os elementos contrastantes (um melodrama de Hollywood escrito por Shepard e uma filmagem árida articulada por Wenders) se casam perfeitamente.

No mesmo citado livro de Buchka, lemos no parágrafo final: “Paris, Texas representa, antes, uma despedida da América. Depois de ter formulado o que interessava nesse país, Wenders se viu em condições de poder deixá-lo sem se sentir derrotado.” Em 1984 era assim mesmo: dando à América o que lhe cabia dar (a produção é franco-germânica, mas a ambientação é estadunidense), Wenders partiu para seus vôos europeus agudíssimos como se percebe em Asas do desejo (1987), seu trabalho mais delirante, e O céu de Lisboa (1995), uma de suas narrativas mais sombrias e misteriosas da fase mais recente. Em sua obra-prima Estrela solitária (2005), um dos melhores lançamentos cinematográficos de 2006 nas cidades brasileiras, Wenders mostrou que nenhuma despedida é definitiva, forçando o espectador-leitor a reconstruir o livro de Buchka em termos mais modernos: voltou a fazer a excelência de seu cinema pisar em solo americano; se a personagem de Harry Dean Stanton em Paris, Texas vai cruzar o deserto americano, acompanhado de seu pequeno filho, em busca da esposa desaparecida, o ator vivido por Sam Shepard em Estrela solitária desaparece no interior americano à procura de seus dois filhos ignorados e de sua mãe, ou seja, ambas as personagens (separadas por pouco mais de vinte anos) querem alcançar suas origens.

Paris, Texas não deixa de ser um ponto de confluência do cinema de Wenders; não é o pico deste cinema, mas é o instante de maior visibilidade da arte de Wenders. Afastando-se do rigor documentário e distanciado de sua fase mais frescamente amadorística (que se encerra com O estado das coisas, 1982), Paris, Texas não impede Wenders de olhar o deserto americano um pouco como um trêfego documentarista em fogos (assim como ocorreu com o realizador italiano Michelangelo Antonioni em Zabriskie Point, 1969, que igualmente filmou a loucura do ser no deserto), mas insere forças melodramáticas que se exasperam nas seqüências finais onde marido e esposa se reencontram numa daquelas casas de erotismo onde o erótico se dá pela imagem e pela palavra e nunca pela aproximação física. Destas fusões meio insanas Wenders extrai de Paris, Texas um dos momentos mais profundos e comunicativos de seu cinema.

Harry Dean Stanton, o intérprete central, desmemoriado no deserto no início do filme, foi visto mais recentemente como um dos irmãos-de-mal em História real (1999), do norte-americano David Lynch. Nastassja Kinski, uma das intérpretes mais requisitadas do cinema internacional da década de 80, está misteriosamente maravilhosa, desde o momento em que surge meio timidamente no filmezinho em Super-8 inserido por Wenders e depois exala como um vulcão na parte final da narrativa. Observe-se a participação como ator do diretor de cinema Bernhardt Wicki, de origem helvético-húngara, na pele do médico que socorre Travis quando este cai desmemoriado no princípio do filme; Wicki é o mesmo que interpretou o amigo doente (e à morte) do casal Marcello Mastroianni—Jeanne Moreau na visita que estes lhe fazem no hospital no começo de A noite (1960), de Michelangelo Antonioni. Dedicado a Lotte H. Eisner (dedicatória nos créditos finais), pensadora do cinema alemão que faleceu em 1983 e que foi a mentora intelectual da maior geração de cineastas que o mundo conheceu, aquela surgida entre os anos 60 e 70 (Alexander Kluge, Werner Herzog, Wim Wenders, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlondorff), Paris, Texas revela todo seu propósito: um marco do cinema.