Crítica sobre o filme "Identidade de Nós Mesmos":

Eron Duarte Fagundes
Identidade de Nós Mesmos Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 30/05/2007

Em determinado momento de Identidade de nós mesmos (A notebook on clothes and cities; 1989), do alemão Wim Wenders, recentemente lançado em dvd, o realizador do filme, Wenders, entrevista o estilista de modas japonês Yohji Yamamoto diante duma mesa de sinuca onde ambos disputam uma partida; é uma autêntica entrevista com tacos nas mãos. O inusitado trivial do cenário (um bar com mesas de sinuca) não será utilizado para as conversas simploriamente filosóficas de botequim; Wenders utiliza com adequação sua densidade estético-filosófica para expor a magnética arte do artista de modas nipônico Yamamoto.

Identidade de nós mesmos, exibido em circuito alternativo por aqui há vários anos com o título original de Caderno de notas sobre roupas e cidades, pertence àquela linha mais caseira, à maneira dos home movies do início de sua filmografia, como Alice nas cidades (1973), onde a câmara disparava livremente para todos os lados, agregando seqüências como num documentário; esta linha de ação estética foi depois, em alguns filmes a partir de Paris, Texas (1984) rompida em nome duma organização dramática que Identidade de nós mesmos (e também em Um truque de luz, 1995, outro home movie; Estrela solitária, 2005, todavia, segue a ordem dramática) rejeita amplamente.

Identidade de nós mesmos é um novo diário em imagens de Wenders. Tokyo-ga (1985), evocando uma Tóquio do falecido diretor japonês Yasujiro Ozu, uma das influências fortes de Wenders, era um diário do cineasta em Tóquio: trazendo para as imagens da Tóquio contemporânea uma Tóquio antiga, Wenders cruzava a linha de tempo no documentário. Em Identidade de nós mesmos Yamamoto espia fotos antigas para criar as vestes de suas modelos atuais: assim, Yamamoto diz desenhar o tempo, aplicando ao moderno uma visão antiga. Ao debruçar-se sobre a personalidade artística do costureiro oriental, Wenders acaba falando de si mesmo; questionando-se no início porque aceitara um trabalho sobre um assunto tão superficial como a moda, Wenders vai no final estabelecer uma aguda relação entre o filme e a moda, incluindo conceitos como montagem, equipe, autoria. Analisando os gestos artísticos de Yamamoto, Wenders se revê como cineasta. Assim como o Ozu de Tokyo-ga é o pretexto para uma auto-personagem. E também o diretor de cinema Nicholas Ray, moribundo em Nick’s movie (1980), é Wenders no espelho de suas paixões fílmicas.

Entre outras coisas, Identidade de nós mesmos é visionário na maneira como um cérebro privilegiado como o de Wenders encarava, há quase vinte anos, uma questão que nesta aurora do século XXI está na ordem do dia: a proliferação de imagens eletrônicas, onde a originalidade se perdeu e tudo se transformou em cópia. Com ironia, Wenders vale-se de vídeos-fragmento para criar dentro da própria imagem o sentido de montagem, conceito básico do cinema: um vídeo-entrevista com o protagonista do documentário, um vídeo sobre a preparação para o desfile e na parte superior do quadro o filme do desfile aparecem simultaneamente na tela em determinado momento; carregando dentro da imagem o vídeo-palavra de Yamamoto, Wenders, um pouco dentro da coisa da câmara na mão (leveza), usa a linguagem do vídeo como uma aproximação a um estilo caseiro (home) de cinema. As inquietações intelectuais de Wenders há quase duas décadas talvez tenham sido empurradas pela avalancha digital, como ele mesmo já previa; mas um filme como Identidade de nós mesmos é apaixonante ainda na singeleza com que desmistifica a necessidade de um filme de aferrar-se a uma estrutura narrativa padrão. Não é por acaso que uma frase de Wenders cita o realizador norte-americano John Cassavetes, outro artista que parece filmar ao sabor do vento (e com genialidade impetuosa).